Voz para que te quero

Ao terceiro álbum a solo, Illa J, o membro mais novo da distinta família Yancey, criado na mesma casa do lendário músico J Dilla, afirma-se definitivamente como um cantor filiado na linhagem clássica do R&B a que pertence Sam Cooke, nome do seu primeiro single.

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No passado, Illa J teve de lutar para ser mais do que “o irmão de J Dilla”; hoje luta para não ser engavetado como rapper: “Não sou um rapper a tentar cantar. Sempre fui um cantor que também pode rappar”

8 de Julho de 2016, Plano B, Porto: um rapaz de Detroit entra no palco timidamente, olhando o público com um misto de desconfiança e receio. "Do you know my music? Do you know Yancey Boys [título do seu primeiro álbum]"?, perguntava Illa J na sombra, primeiro sintoma de como, para este rapaz criado na mesma casa da lenda do hip-hop norte-americano J Dilla – virtuosíssimo produtor e multi-instrumentista cuja marca em domínios que vão do hip-hop ao R&B, da electrónica à soul, pode ser comparada à de Miles Davis no jazz, dos Beatles no rock ou de James Brown no funk –, o facto de ter público num país longínquo como Portugal ainda podia suscitar dúvidas sobre se não estaria lá menos por ele do que por aquela curiosidade semi-mórbida de ver "o irmão do J Dilla" (e, não por acaso, uma rapariga na assistência haveria de lhe pedir para assinar um vinil do famosíssimo Donuts, álbum maioritariamente concebido durante um longo período de hospitalização de Dilla e lançado três dias antes da sua partida, com apenas 32 anos).

Não se confunda isto com ressabiamento: Illa é o maior admirador do irmão, não se tendo coibido de evocar amiudadamente o seu nome e de recriar ali mesmo, live, pequenos trechos das suas composições. A casa não estava cheia, mas, à pergunta do americano, os coros em resposta ribombaram de imediato, e, a partir daí, mais à vontade, Illa soltou-se e foi mostrando o porquê de ser, por direito próprio, um dos mais interessantes rappers dos últimos anos (se bem que afastado do mainstream mediático). Fê-lo rappando, cantando e tocando ao piano (também é baixista ocasionalmente). E foi pelo meio desses momentos em que mostrou o quão elástica (falsetes deslumbrantes uns atrás dos outros) e clássica (disso trataremos mais adiante) é a sua voz que o americano atirou para a plateia, com um brilhozinho nos olhos, "I love to sing, you know? I'm a rapper, too, and I love to rap, but singing... It’s all about singing, man! James Brown, Michael Jackson, Prince, you know?!”.

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O terceiro álbum traz Illa J de volta a casa ­— a casa dos pais que vemos no vídeo de Home, a “casa” afectiva que é Detroit, a grande cidade industrial em que cresceu e que é também a cidade da Motown, do tecno e, claro, do hip-hop

Agora, um ano depois, quando o confrontamos com o "Fuck this rap shit!” que se lhe ouve no novo álbum (em Turn it up), Illa reitera a mesma ideia. “Muitas vezes, rappar aborrece-me... E só quero mesmo é cantar”, diz, acrescentando uma daquelas revelações cuja impossibilidade de concretização só torna tudo mais comovente: “Alguns meses antes de o meu irmão partir, falámos em ir para L.A. para ele produzir um álbum inteiro para mim em que eu só cantasse… Ele sabia como eu amo cantar."

A síndrome do “irmão mais novo”

Quem conhece os seus álbuns anteriores já havia surpreendido a inegável tendência de Illa para o canto e para as harmonias. Yancey Boys, o primeiro (um dos grandes discos de 2008, absolutamente narcótico), cujo título remete para o nome de família, era um disco com tanto de rap como de soul, de rima e de canto. Para o que muito ajudou, claro, o facto de ser composto integralmente por instrumentais perdidos do irmão J Dilla – concebidos entre 1995-98, o que só comprova o carácter verdadeiramente intemporal da sua música, pois são dos melhores beats que Dilla desencantou, superiores, aliás, a muitos inseridos em álbuns seus em nome próprio. À data, essa circunstância reforçou o carácter singular (porque aparentemente contraditório) do disco: simultaneamente nostálgico, de "despedida" (dupla: de Illa do irmão e deste do público, embora álbuns póstumos já se contem quatro), mas também jovial, refrescante, o "mano mais novo" a mostrar à família lá em casa como também sabia da poda.

Ao contrário do que alguns escreveram à data sobre Yancey Boys, nunca sentimos que Illa se "segurasse" apenas graças aos instrumentais do irmão, e isso porque, embora não fosse então um prodígio como letrista (mas também não era a sua intenção, a onda era toda ela opiácea, ou “chill-laid-back”, como diria um conterrâneo seu de Detroit), já denotava uma sensibilidade apurada na forma como introduzia a sua voz nas batidas, algo nada fácil de fazer nas atmosferas muito próprias de Dilla (oiça-se essa droga de música que é All good, letra, voz e instrumental em ménage tântrico). Mas Illa acusou o toque, como nos confessa: “Depois das críticas negativas que recebi, quis provar que também era um rapper credível, foi esse o meu objectivo no Sunset Blvd. [EP a meias com Frank Nitt]."

Em virtude desse fantasma do irmão com que alguma crítica lhe acenou, o músico, depois de alguns EP e álbuns colaborativos, lançou, em 2015, e no seguimento de um retiro em Montréal, um novo álbum a solo (Illa J) sem um único instrumental saído das mãos do irmão, entregando a produção quase integralmente à dupla canadiana Potatohead People (há uma mão de Kaytranada também, por exemplo), afirmação de personalidade que, contando alguns excelentes momentos, deixou, ainda assim, uma certa sensação de frustração, como se não se tivesse levado até ao fim tudo o que de prometedor Yancey Boys prenunciava. De todo o modo, o disco, se bem que mais rappado do que cantado (neste sentido  registando-se um certo “retrocesso”), confirmava definitivamente o virtuosismo vocal do americano e deixava bem visível a admiração por – e, nesse sentido, a intenção de aproximação a – um dos nomes pronunciados nesse concerto no Porto: Michael Jackson, o Rei da Pop, emulado no videoclipe de Universe, com Illa J de fato preto, calça colada à perna e óculos de sol a dançar (só faltava mesmo o moonwalk…).

James Brown, Prince, Michael Jackson – uma súmula possível (abreviadíssima, claro) da música negra? Quase, ficando "só" a faltar todo um filão de enormes cantautores clássicos de R&B (e do jazz, da soul, do hip-hop e da electrónica, por aqui se vendo o raio de penetração da música negra em todo o século XX), esse de Curtis Mayfield, Smokey Robinson, Aretha Franklin, Stevie Wonder ou Isaac Hayes (para citar os mais óbvios), esse capaz de baladas romanticíssimas, de introspecções poéticas profundas ou dos manifestos políticos mais agitadores. O mesmo filão, portanto, de Sam Cooke (quem um dia o ouve a cantar You send me, original seu, nunca mais esquece...), nome que Illa J explicitamente homenageia no título de um dos singles que pré-anunciou o seu novo álbum.

Além da beleza desse gesto reverente, avulta, bem assim, a consciência histórica de um jovem relativamente à tradição da música negra com que foi cultivando os ouvidos em casa (o pai foi ghostwriter de muito boa gente que gravou para a Motown), essa que, hoje, tanto público e tantos artistas jovens desconhecem, ignorando que o R&B não nasceu nos anos 90 com as TLC ou as Destiny’s Child (bandas com os seus méritos, obviamente, não é esse o ponto). O mesmo público que não hesita em afirmar que alguns dos nomes do R&B contemporâneo (Syd, SZA, Kehlani, Jhené Aiko) têm uma “grande voz” – como explicar que talvez não seja bem assim a gente que nunca escutou Dionne Warwick, Minnie Riperton ou Diana Ross (dizemos “escutar”, e não passar os ouvidos pelos “clássicos” que alimentam elevadores e feeds de redes sociais) ou aquele obscuro e infinito rol de grupos maravilhosos de doop-wop dos anos 50 e 60?

De um outro prisma, Sam Cook, segunda canção do álbum, é também um objecto que sinaliza as transformações que a música contemporânea, concretamente o seu modo de criação, atravessa: uma canção de R&B clássico, sim, mas composta e gravada não por uma banda em estúdio, antes por um tipo sozinho – Calvin Valentine, americano que cita, claro, Curtis Mayfield entre as suas referências... – a criar num computador acompanhado de uma parafernália de maquinarias digitais (ainda há tempos, muitos pasmavam com o número de poderosas actuações no palco do Primavera Sound cujo suporte dispensava instrumentos).

Valentine, com quem Illa diz ter uma “química natural” em estúdio, assina a composição de todos os instrumentais aqui presentes (de 30 gravados, apenas dez entraram no álbum, o que leva Illa a confirmar o provável lançamento de novos trabalhos em conjunto no futuro), num processo de gravação que demorou apenas seis (intensivos) dias de Dezembro do ano passado, e cujo resultado final atesta o que o anterior disco já apontava: a vontade de Illa em descolar completamente da sombra do irmão e do rap mais tradicional para se afirmar de moto-próprio como cantor tout court, distante, portanto, dos rappers que também cantam (Drake, J. Cole, Chance The Rapper) hoje tão frequentes de ouvir, ao contrário de há alguns (poucos) anos atrás (seria herético então). E Illa é bem claro a pôr os pontos nos is: “Eu não sou um rapper a tentar cantar. Eu sempre fui um cantor que também pode rappar."

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Voltar a casa

Ao contrário do que chegou a circular (declarações do próprio) e do que o single Home indiciava, o novo álbum não é (ainda) em registo todo cantado (embora Illa no-lo admita para um futuro breve), nesse sentido não concretizando uma viragem total do hip-hop (como aconteceu, por exemplo, com Aloe Blacc em Good Things, de 2010), antes aprofundando o caminho já iniciado, ou seja, balanceando o rap com o canto (a diferença está na maior predominância deste último), a cadência do beat com a fluidez airosa do R&B.

Illa, que entretanto teve aulas de canto (quis tornar-se num “atleta vocal”, palavras do próprio no site da Jakarta Records, editora alemã independente de extremo bom gosto e responsável pelo trabalho de gente estimável como Akua Naru, DJ Vadim, Kero One ou Oddisee), mostra-se perfeitamente à vontade para explorar a sua voz por terrenos menos seguros, o que lhe permite, por exemplo, levar a cabo o tour de force que é Home, cantada integralmente num espantoso falsete (já ninguém nos trazia Mayfield à memória tão intensamente há muito tempo), nunca soando, porém, a exercício forçado ou demonstrativo. E que Home é esta? São muitas, na verdade. Desde logo, a casa original dos seus pais que vemos no videoclipe “coral” que acompanha a canção, e à qual Illa dedica duas canções, Sam Cook e Maureen (qual delas a mais bela…). Em segundo lugar, a “casa” afectiva que é Detroit, a grande cidade industrial em que Illa cresceu (documentada e celebrada no mesmo videoclipe) e com uma história recente atribuladíssima, espécie de queda depois de uma fulgurante ascensão (desemprego, pobreza, desertificação) que culminou na escandalosa declaração de falência em 2013 (entretanto ultrapassada) e na hiperbólica ameaça de se transformar numa cidade-fantasma como tantas outras cidades da América. Detroit, relativamente à qual Illa fala num autêntico “renascimento” (ainda “in progress, ressalva), é também a cidade da Motown, do tecno e, claro, do hip-hop – o de Eminem, Royce da 5′9″, Xzibit e Slum Village, histórico colectivo de que tanto J Dilla (co-fundador) como o irmão mais novo fizeram parte.

Mas Home é, ainda, a “casa musical” que o John Yancey que consta do B.I. diz ser, para si, o canto, numa luta que se inicialmente foi a de mostrar que não era apenas “o irmão de J Dilla”, hoje passa também pela recusa em ser engavetado como rapper. Assim escreveu na nota de intenções que acompanhou o lançamento do single Sam Cook: “Cantar sempre foi uma grande paixão para mim, sempre me fascinaram as acrobacias vocais que alguns cantores conseguem fazer. Eu vejo-me, antes de tudo, como um escritor de canções." A sua voz, se emula as maviosas figuras dos anos 60 e 70 que vimos citando (em Sam Cook e também na já referida Home, canção que tem um sample da voz de Gloria Barnes da canção homónima inscrita no álbum Uptown, de 1971), não menos convoca, pela atmosfera sonora específica que Valentine arquitecta, aquelas que, nos anos 90, renovaram a soul (vulgo neo soul) e o R&B americanos, injectando algum do “classicismo” que, genericamente falando, os anos 80 haviam colocado um pouco de parte à boleia do disco, da pop e das novas experiências proporcionadas pela música electrónica. D’Angelo, Maxwell, Bilal, Dwele, Raphael Saadiq são, por isso, nomes que aqui ecoam (Photosynthesis, Snow beach, a magnífica 7 mile), passo em que podemos perspectivar Illa J como uma ponte entre uns (anos 60 e 70) e outros (anos 90), na esteira de gente como Mayer Hawthorne, Anderson. Paak ou Aloe Blacc, ao mesmo tempo que se afasta do actual R&B regado (“Regue com um pouco de azeite” é expressão que tem aqui as suas afinidades…) a electrónica e graves obesos, synths e Auto-Tune, fórmula tantas vezes próxima do trap actual – pese embora essa circunstância também traduza, de outro ângulo, a fecundidade e a inventividade que só géneros complexos carregam dentro de si, e o R&B tem-se mostrado, de facto, um ser mutante (et pour cause fascinante) ao longo da sua história.

Voltemos, então, a Turn it up: “Whenever I’m feeling down/ And there is no else around/ I sing my favourite melodies (…)/ And it takes me to a place deep down in my soul” – não queremos que Illa J ande na mó de baixo (só lhe queremos bem), mas que uma coisa não invalide a outra e que ele continue a cantar e a encantar, isso sim, é tudo o que desejamos.

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