A decadência da cidade

A ideia de que há uma degradação da cidade histórica provocada pelo turismo é insuficiente, e até equívoca, enquanto razão da moderna catástrofe urbana.

Há uma relação necessária entre cidade e catástrofe que está para além daqueles acontecimentos súbitos que arrancam a cidade à sua continuidade histórica, como foi o caso, em Lisboa, do terramoto de 1755. A urbanização planetária impôs uma visão do urbano como lugar de catástrofe. Um exemplo extremo desta visão apocalíptica são os livros de um “urbanista” americano com uma forte dimensão política chamado Mike Davis. Numa cidade como Los Angeles, vê ele uma prefiguração das megalópoles que em todo o mundo instauram um imaginário do desastre, transpondo para a realidade o cenário de ficção criado pelo cineasta Ridley Scott no Blade Runner. Por sua vez, Salvatore Settis, um grande historiador de arte italiano, parte do exemplo paradigmático de Veneza, num livro intitulado Se Venzia muore (2014), para definir um outro tipo de catástrofe: aquela em que as cidades perdem a memória de si. Settis faz a defesa, algo nostálgica, da cidade histórica contra a sua banalização e conversão em mercadoria. Denunciar a turistificação da cidade, como está a acontecer em Lisboa e no Porto, é um exercício quase tão inútil como querer lutar contra a globalização. Mas não podemos ignorar que transformar a cidade num “centro histórico” que deve servir para o consumo turístico e para o divertimento de fim-de-semana é uma manifestação da extrema decadência da cidade. Essa decadência não começou com o turismo: o estado de decadência de uma cidade é ainda mais visível quando já só o turismo a pode salvar. Veneza ou, numa outra escala, Lisboa e Porto são salvas por aquilo que também as mata. E nada adianta a nostalgia porque é preciso muito mais. Se a cidade entrou há muito tempo em decadência foi porque entrou em crise e se quebrou a relação dos “cidadãos” com o lugar em que vivem. O que se transformou na cidade contemporânea foi a faculdade de habitar (que não deve ser confundida com a necessidade de ter um alojamento) e a perda da condição de lugar exclusivo da vida política. Arquitectos e urbanistas têm acompanhado e até acelerado esta lógica. Sem angústias e evitando até o gesto crítico. A decadência da cidade, da qual a turistificação é mais uma consequência do que uma causa, encontra as suas raízes na moderna despolitização (que se tornou um lugar-comum da teoria política desde Carl Schmitt). Como disse uma vez Giorgio Agamben numa entrevista, para superar a decadência da cidade seria necessária uma nova forma de vida que encontrasse ao mesmo tempo a capacidade de habitar e a vida política. Até lá, bem podemos arremessar armas contra o turismo e citar um escrito deste século que via nele “um dos maiores movimentos niilistas, uma das grandes epidemias do Ocidente”. Estaremos certamente a exagerar, a dar azo a que se generalizem perigosas hostilidades, e a não acertar no alvo. A decadência das cidades pode ser vista a partir do conceito de “apocalipse cultural”, criado por um grande etnólogo e filósofo italiano, Ernesto De Martino, que morreu em 1965 quando estava a trabalhar numa obra monumental que, em estado inacabado, foi publicada muito anos depois com o título La fine del mondo. Os “apocalipses culturais”, tal como De Martino os define, não são acontecimentos que irrompem subitamente criando um estado de excepção; são antes “um risco antropológico permanente”, qualquer coisa de trans-histórico ou de eterno (não num sentido teológico). O “fim do mundo” próprio dos “apocalipses culturais” não provoca um medo bíblico, mas o medo de sermos absorvidos pelo próprio mundo a que pertencemos. Trata-se de uma perda como manifestação da vida cultural. 

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