A loja de bricolage que comprou milhares de artefactos pilhados no Iraque

Mais de 5500 peças apreendidas nos EUA depois de terem sido compradas pela cadeia Hobby Lobby, que está a montar um Museu da Bíblia. Chegavam às lojas em caixotes etiquetados como "amostras de azulejos". Indemnização é de três milhões.

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Algumas das peças apreendidas, em imagens divulgadas pela procuradoria de Nova Iorque DR
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Entre 2010 e 2011, uma grande cadeia de lojas de bricolage e artigos domésticos norte-americana comprou milhares de artefactos milenares contrabandeados a partir do Iraque e agora vai ter de pagar três milhões de dólares de indemnização. As peças, entre as quais cerca de 450 lápides cobertas de escrita cuneiforme, chegavam em caixotes falsamente etiquetados como “azulejos de barro (amostras)” ou “ladrilhos de cerâmica”, acusou quarta-feira o Departamento de Justiça norte-americano, e agora serão confiscadas pelo governo.

A cadeia de lojas, a Hobby Lobby, é detida pela família Green, cristãos evangélicos que levaram o Supremo Tribunal a conceder às empresas privadas o direito de invocar princípios religiosos para excluir o pagamento de contraceptivos nas apólices de seguros dos seus funcionários. Os seus interesses em coleccionar peças da antiguidade do Médio Oriente, mesmo anteriores ao cristinianismo, foram a sua perdição, neste caso.

Querem inaugurar em Washington, neste Outono, um Museu da Bíblia. Com sede no estado de Oklahoma, a Hobby Lobby comprou centenas de lápides de barro com escrita cuneiforme, uma forma de escrita que nasceu na Mesopotâmia 3500 a 3000 anos antes de Cristo. Terão saído ilicitamente do Iraque no âmbito da gigantesca sangria de bens arqueológicos e antiguidades da região para o mercado negro. Eram, juntamente com perto de três mil bulas de barro (selos ou distintivos circulares com inscrições), depois entregues nas lojas da Hobby Lobby e de duas das suas empresas subsidiárias.Uma das fontes de financiamento do Daesh é a venda de artefactos dos países onde tem levado a guerra.

O caso, um processo cível movido por procuradores federais em Brooklyn, Nova Iorque, intitula-se The United States of America v. Approximately Four Hundred Fifty (450) Ancient Cuneiform Tablets; and Approximately Three Thousand (3,000) Ancient-Clay Bullae. Formalmente, como explica a revista Atlantic, os próprios objectos assumem aqui a figura de réus no processo de apreensão. Os artefactos terão viajado por Israel e pelos Emirados Árabes Unidos e a sua aquisição terá sido feita por 1,4 milhões de euros, indica a Procuradoria do estado de Nova Iorque em comunicado. Todo o processo estava pejado de “sinais de alerta”.

A colecção terá começado a ser construída em 2009, com manuscritos e antiguidades. O presidente da Hobby Lobby e um consultor viajaram até aos Emirados, em Julho de 2010, “para inspeccionar um grande número de tábuas cuneiformes e outras antiguidades à venda”. Apesar de ter sido alertada por outro perito em direito do património seu avençado de que a compra deste tipo de bens implicaria “um risco considerável de que os artefactos tenham sido pilhados de sítios arqueológicos no Iraque”, detalha o comunicado da justiça americana, a Hobby Lobby avançou com a compra. Cerca de 5500 peças, que incluem ainda selos cilíndricos, viajariam em Dezembro desse ano para os EUA.

Entre os sinais de alerta estava a forma como foram mostrados informalmente e sem dados fidedignos sobre a sua origem, bem como um pagamento através de sete contas pessoais em nomes diferentes, através de um intermediário. Segundo a Procuradoria de Nova Iorque, os artefactos passaram pela alfândega sem as formalidades necessárias no que toca a bens móveis de património – aliás, o perito que aconselhava a Hobby Lobby a ter cautelas com esta compra indicava também, diz a Atlantic, que os artefactos culturais pilhados do Iraque desde 1990 estão protegidos por "restrições especiais de importação que envolvem penas criminais e multas pesadas”.

À 10.ª encomenda, a polícia fronteiriça interceptou outros cinco carregamentos com etiquetas que indicavam, “falsamente” que o país de origem dos artefactos era a Turquia. Em Setembro de 2011, chegou nova remessa depois de muito tempo sem envios, desta feita oriunda de Israel e indicando, numa “declaração falsa”, que as bulas que continha eram oriundas daquele país.

A Hobby Lobby chegou a acordo com a justiça federal, lê-se no comunicado do Departamento de Justiça, tendo-se comprometido a adoptar “políticas internas e procedimentos que regulem a importação e compra de propriedade cultural” e a “entregar relatórios trimestrais ao Governo de quaisquer aquisições” de produtos culturais nos próximos 18 meses.

“Devíamos ter sido mais vigilantes e questionado cuidadosamente como foram tratadas as aquisições”, disse o presidente do Hobby Lobby, Steve Green, em comunicado. Green indica ainda que a empresa colaborou com a investigação e que a colecção de artefactos históricos “é consistente com a missão e paixão da empresa pela Bíblia”, mas que a Hobby Lobby “é nova no mundo da aquisição destes bens e não compreendeu totalmente as complexidades do processo” de compra.

Foram cometidos “erros lamentáveis”, disse, mas o seu objectivo era mostrar os artefactos apreendidos em museus e instituições públicas. Mas não necessariamente no futuro museu bíblico. O vice-presidente de marketing e administração da instituição, Steven Bickley, garantiu que “os artefactos em causa nunca estiveram” na colecção do museu. “Não temos problemas com a nossa colecção” e o museu não integrou a investigação nem o acordo a que chegaram as partes, disse à revista Atlantic.

Agora, os proprietários dos artefactos terão 60 dias para reclamar a sua posse e depois disso é a vez de o Governo iraquiano poder fazê-lo, cabendo, segundo o New York Times, ao Departamento de Justiça americano a decisão final sobre o seu destino.

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