“A Dilma começou a cair quando propôs um ajuste de contas com a velha ditadura”

António Espinosa, cientista político e ex-combatente contra a ditadura militar, diz que o Brasil ainda não chegou à democracia, fala da corrupção e do suicídio político do PT e diz que é preciso repensar antigos ídolos e ícones para encontrar uma saída.

Foto
António Espinosa MÁRIO LOPES PEREIRA

Professor de Teoria Política e Relações Internacionais, activista da Frente Popular Brasil, António Roberto Espinosa foi também jornalista e guerrilheiro, ex-comandante da Vanguarda Popular Revolucionária contra a ditadura, ao lado de Dilma Rousseff. Preso e torturado (1969-1973), esteve na mesma luta que Lamarca e Marighella. Nascido em Osasco, São Paulo, em 1 de Setembro de 1946, disse um dia já ter vivido o suficiente para saber que nada é definitivo. Em Portugal a convite da Associação 25 de Abril, da Associação de Estudos de Comunicação e Jornalismo e da Casa da Imprensa, para uma conferência intitulada “Brasil: da ditadura militar ao presidencialismo dos ‘impeachment’” (esta quinta-feira, às 18h, no Salão Nobre de Casa da Imprensa), falou ao PÚBLICO sobre a turbulenta realidade brasileira e as possíveis saídas da crise.

Envolveu-se cedo na política, inclusive na luta armada contra a ditadura militar. Como é que vê o Brasil de hoje, à luz dessa sua experiência?
Continuamos a lutar com a velha opressão. Com a velha tradição de um país que se formou sob o colonialismo, que adoptou o escravismo, e cuja herança ainda é essa. Nós não chegámos à democracia. Aliás eu penso a democracia mais em termos gregos, a democracia directa, da praça pública, do sorteio, do que a democracia representativa.

Mas como é que isso seria possível num país que é quase um continente?
Talvez sob a forma federativa, com algumas centenas de pequenas autonomias locais que poderiam se articular de uma maneira federativa. Agora é evidente que este não é um problema só brasileiro, é internacional, de um mundo globalizado, em que o estado-nação ainda é a autoridade suprema e detém o monopólio da violência. E sob esse monopólio a democracia tipo ateniense é impossível. Mas é um horizonte.

Há algum partido brasileiro defenda, hoje, esse tipo de democracia?
Não, não há. O partido que mais perto chegou disso foi o PT [Partido dos Trabalhadores], e sob o governo da Dilma Rousseff.

Mais do que sob a presidência de Lula da Silva?
Sim. Porque o Lula representou um compromisso com a direita tradicional. O Lula procurou representar o regime do “ganha-ganha”, em que fazia concessões aos de baixo mas onde nunca os de cima ganharam tanto. Ele não precisou de fazer essa escolha, porque havia uma conjuntura internacional favorável. Já a Dilma resistiu ao “ganha-ganha” e procurou privilegiar os de baixo.

Isso influiu no seu afastamento da presidência?
Acho que sim. A Dilma começou a cair quando criou a Comissão Nacional da Verdade, quando ela propôs um ajuste de contas efectivo, que o governo Lula sempre recusou fazer, com as velhas elites, com a velha ditadura. Ela não propôs sequer a punição, propôs apenas o apuramento [dos crimes cometidos na ditadura militar]. Mas para alguns sectores, isso seria uma antessala da punição.

No seu depoimento a essa comissão, disse que a ditadura continua presente na sociedade brasileira, nas esquadras, nas instituições. Que presença é essa?
Imensa. A Polícia Militar, que equivale em Portugal à GNR, foi formada sob a ditadura militar. Foi militarizada. E tem uma prática extremamente preconceituosa nas periferias, contra as populações negras, indígenas e moradores pobres, tratados como delinquentes ou pré-delinquentes. E é um tratamento extremamente autoritário. O Brasil ainda é o país da “carteirinha” [da exibição da autoridade], muito burocrático. O desafio à autoridade é uma lei não escrita, mas que rege o país. Basta usar farda. Qualquer uma.

Mas esse abuso do poder, para existir, precisa da anuência da classe política…
Eu entendo essa burocracia estatal como uma classe social autónoma que se articula mas não se subordina sempre às classes economicamente dominantes, embora integre o bloco dessas classes. Mesmo os funcionários subalternos, oprimidos como tal, sentem-se membros dessa burocracia, são solidários com ela. São membros do Estado.

Voltando a um dos seus depoimentos: disse que o Estado, durante a ditadura, era um Estado em luta contra a sociedade e deixou a marca da corrupção. Mas a corrupção alastrou além ditadura, a várias áreas e classes. O que é que a alimenta?
Alastrou inclusive à esquerda. Por um lado há esse aspecto de ser um país muito grande: núcleos populacionais grandes mas dispersos no território, o que torna muito caro fazer política. Os partidos, para serem nacionais, têm um custo elevado. São distâncias de oito, dez mil quilómetros, diferenças económicas profundas. Então esses partidos, para terem viabilidade eleitoral, para concorrerem com os partidos da direita (que sempre foram corruptos, associados ao grande capital e inclusive a sectores do narcotráfico), acabaram fazendo o mesmo jogo. Foi o que fez o PT, imaginando que eles agora faziam parte da elite dominante, que eram recebidos como iguais. Na verdade, eles foram tolerados enquanto tal foi conveniente…

Foi um suicídio político?
Foi uma esperteza que na verdade era um suicídio. Foi a busca de uma vantagem que se transformou num malefício. Entraram na coalizão das classes dominantes pela porta dos fundos. E foram empurrados por ela.

Depois do afastamento de Dilma, depois de Temer, como é que vê o futuro? Há quem acredite na justiça mas também quem tema um excesso de poder dos juízes…
Não vejo sectores politicamente activos que não tenham, de alguma maneira, sido beneficiados por esses esquemas. Ninguém saiu com as mãos limpas. Mas é necessário fazer uma distinção entre direito e justiça. As instituições do direito positivo brasileiro, inclusive o Supremo Tribunal Federal, integram um sistema burocrático de administração do direito, em nome da justiça. A justiça possível, sob as condições do direito. Então uma alternativa que se coloca hoje é uma ditadura da magistratura, que está colocada, mesmo com eleições directas. O candidato pode ser o Sérgio Moro, que é o juiz de Curitiba encarregado da Operação Mãos Limpas; pode ser o juiz Joaquim Barbosa, que foi o relator do processo do Mensalão. Qualquer um desses dois, ou eventualmente um terceiro, pode ser candidato em eleições legítimas. Teriam uma grande chance, porque o povo brasileiro sempre soube da corrupção, mas sempre fez questão de imaginar que não seria bem assim. Afinal de contas todos nós pagamos para não entrar na fila, para furar a fila, é o jeitinho brasileiro, uma coisa tolerada. Agora quando isso é revelado, transformado num grande escândalo, a população ficou aturdida: Até fulano? Até beltrano? Não sobra ninguém?

Sobrarão os juízes, por enquanto.
Exactamente. Acontece que existe um tipo de corrupção institucional no Brasil que é este: a Constituição proíbe, no sector público, salários superiores ao do Presidente da República, que é o salário do presidente do Supremo Tribunal Federal, uns 32 ou 33 mil reais [8500 a 8800 euros]. Só que no Judiciário [sistema judicial] os salários superam os 100 mil [26.700 euros], graças aos benefícios acumulados, que são considerados direitos adquiridos. São raros os juízes que ganham menos do que o Presidente!

Mais um caso que só é possível com a anuência da classe política, não?
Isso também assegurava a corrupção: nós não mexemos com os interesses corporativos da magistratura e a magistratura não investiga os crimes dos políticos.

Mas agora investiga. Qual é o lugar reservado à política, nesta guerra?
Há uma outra coisa que emerge no Brasil de hoje que é o fascismo. Há um sector da população que se lembra, com saudades, da ditadura. E esse sector conseguiu eleger deputados. Como Jair Bolsonaro, um ex-torturador. Hoje supera os 12 ou 13% de preferências do eleitorado, ou seja, pode crescer. Mesmo em eleições directas.

E a esquerda, no meio disso?
A memória mais forte ainda é do Lula. Ele lidera hoje as pesquisas eleitorais, mas para vencer no primeiro turno. Mas dificilmente teria legitimidade para vencer também num segundo turno, para ultrapassar os 50%. Quem talvez pudesse alcançar isso é o Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), que era o partido do Leonel Brizola. É uma liderança do tipo populista, que não foi atingida por quaisquer denúncias de corrupção. Mas é de outro partido e o PT ainda acredita que o Lula ganhe.

Haverá uma terceira alternativa?
Não há. As “directas já” ainda não são uma alternativa aceite pelo espectro político. O Temer não resiste às denúncias de corrupção contra ele, deve cair; o sucessor natural seria o presidente da Câmara dos Deputados, o Rodrigo Maia, que no dia seguinte seria coberto de denúncias de corrupção, contra ele também, e tenderia a cair. A alternativa que a elite teria seria uma alternativa popular, de eleições directas, em que se retomaria o princípio da legitimidade: um candidato ou presidente eleito pelas urnas. Mas quem pode disputar isso são os partidos tradicionais e sobre eles paira o peso da corrupção.

Que saída vê, então?
Ao invés de aumentar o poder da burocracia judiciária, que administra o direito, deviam abrir-se espaços para a manifestação popular, para que o próprio povo, ou as lideranças populares, pelo menos, saiam dessa situação de estarem aturdidos e sejam forçados a pensar um projecto para o país. Porque hoje ninguém pensa num projecto, a escolha hoje é só de quem será o próximo algoz; ou de que tamanho será o porrete. A imaginação política tem que voltar a funcionar, temos que encontrar respostas. É um momento de crise que não é só nossa, é uma crise democrática globalizada. Enfim, temos de ter coragem de confrontar os nossos ídolos, de repensar os nossos ícones. Um país do tamanho do Brasil, no hemisfério sul, tem uma responsabilidade global nesse momento. Buscar uma saída não é um esforço só nosso, para resolver os nossos problemas, é um problema para a humanidade, nesse quadrante da história.

RECTIFICAÇÃO: Onde se lia, antes, "Preso e torturado (1969-1973), esteve na mesma cela que Lamarca e Marighella", passou a estar, correctamente, "Preso e torturado (1969-1973), esteve na mesma luta que Lamarca e Marighella".

Sugerir correcção
Ler 4 comentários