Por uma reorganização florestal

Os defensores do statu quo, sem propostas de lei e sem vontade política, dirão hoje que a atual legislação é suficiente ou que não se pode legislar à pressa e sem qualidade.

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Rescaldo do incendio florestal na zona de Nodeirinho Daniel Rocha

Se desde 1975 perdemos mais de quatro milhões de hectares florestais e todos os anos assistimos a dramas sociais – em 2016 cerca 160.000 hectares ardidos – a 17 de Junho os portugueses e, em particular, os habitantes de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e outros concelhos foram confrontados com uma enorme tragédia com mais de 68.000 hectares ardidos, destruição de empresas, bens, animais, mais de 250 feridos e, o mais grave e irreparável, 64 vidas dizimadas pelo fogo.  

O flagelo anual dos incêndios deve-se, para além de causas naturais, a desleixos em queimadas, fogueiras, foguetes, cigarros, ateamentos criminosos ou patológicos e, não raro, a falhas de entidades (para)estatais como o SIRESP, uma parceria público-privada, uma central de negócios adquirida com o preço exorbitante de 485 milhões de euros e com rendas chorudas.    

É conhecido o diagnóstico resultante das mudanças duma sociedade agrária para uma sociedade urbana a partir dos anos 70, em que as velhas atividades e funções da floresta (roça do mato para camas de gado e fertilizantes orgânicos, o corte de lenhas para aquecimento e consumo doméstico, o pastoreio de ruminantes) diminuíram, desapareceram e foram substituídas por equivalentes funcionais como os fertilizantes químicos, o consumo de gás e eletricidade. Concomitantemente, para o gradual despovoamento contribuíram a florestação desde os anos 50/60 e o êxodo rural dos anos 60/70; o agravamento do desequilíbrio litoral-interior e o envelhecimento do mundo rural; a expansão de monoculturas florestais para as celuloses desde os anos 80; o abandono e a desvalorização da agricultura graças a políticas da PAC e de sucessivos governos, a começar pelo de Cavaco Silva; a saída de jovens para formação e trabalho nas cidades do país ou estrangeiro; as políticas de desordenamento territorial, o encerramento de serviços florestais, infraestruturas e equipamentos na educação, na saúde, nos correios e noutros serviços públicos.

Perante a recorrente calamidade nacional, que fazer? Assumir a situação como uma fatalidade da natureza?  

Se manter a situação de desorganização só favorece quem retira dela lucros e rendas (grandes proprietários, empresas de celulose e alguns madeireiros sem escrúpulos), nacionalizar a floresta pode seduzir mentes alegadamente coletivistas mas esbarram com a realidade do país rural minifundiário no Norte, no Centro e no Algarve. Esta estrutura minifundiária, cuja média de terreno florestal por proprietário é de 2000 m2 com parcelas dispersas, com vários herdeiros, bastantes emigrados ou em eventual litígio de partilhas, não se desfaz por decreto, pois estas pessoas e famílias continuam ligadas à terra, suas poupanças e memórias.

Várias teses e estudos não só de agrónomos, geógrafos e economistas rurais, como sobretudo de sociólogos e antropólogos, nos últimos 30 anos, em Portugal, sobre as comunidades rurais são bem claras a este respeito. Por outro lado, só quem ignore o fracasso de diversas visões e preconceitos nomeadamente liberais sobre o campesinato, só quem não conheça as lógicas, estratégias e mentalidades de pequenos produtores rurais e silvícolas, bastantes deles já (des)camponizados e amiúde sem recursos para operar uma limpeza das suas matas, pode pensar resolver magicamente o problema apenas por via fiscal ou de multas.

Porém, o que hoje ninguém pode ignorar é que, sob razão ou pretexto de terras abandonadas para as quais importa obviamente, após notificação, procurar uma solução, há todavia estratégias por parte de determinados grupos económicos ligados aos negócios dos eucaliptos e das celuloses que pretendem aumentar o eucaliptal e concentrar para esse efeito a propriedade através da compra a saldo de terras abandonadas, de resto já incentivados pela legislação saída do Governo PSD/CDS pela mão de Assunção Cristas. E, hoje, as posições de inércia por parte dos responsáveis do PSD/CDS, indo ao encontro dos referidos grupos económicos, acabam objetivamente por manter as condições do desordenamento territorial, enquanto pasto explosivo para novas catástrofes de incêndios florestais.

Os defensores do statu quo, sem propostas de lei e sem vontade política, dirão hoje que a atual legislação é suficiente ou que não se pode legislar à pressa e sem qualidade. Não obstante os choques e as promessas feitas no ano passado, verificamos a existência de dois, embora diferentes, projetos-lei: um do Governo PS e outro do Bloco de Esquerda. Mantê-los na gaveta e não os discutir, como vem dizendo o PSD, sob o pretexto de não terem sido convidados pelo Governo para tal, é de uma irresponsabilidade política total e indesculpável, mais ainda perante as consequências desastrosas supervenientes no futuro.  

A alternativa realista que se impõe consistirá em enveredar por uma via de intervenção estatal e entidades associativas, societárias ou cooperativas de produtores através de uma das figuras jurídicas existentes, desde que aprovada pelos próprios proprietários sob o princípio de um voto por cada proprietário e com redistribuição de custos e ganhos conforme as parcelas possuídas. Definido um plano de registo dos proprietários, um programa de ordenamento, aproveitamento, tratamento e gestão coletiva e equilibrada da floresta, em termos de protagonistas (Estado, Câmaras, associações/cooperativas e proprietários) e biodiversidade de espécies a reflorestar (autóctones e outras mais rentáveis mas contidamente), tal planificação estatal-municipal indicativa mas eficiente porque imperativa, implicando eventualmente emparcelamento e/ou  intervenção em escala e com recurso a fundos nacionais e europeus no quadro do Horizonte2020, deverá visar também a implementação de medidas de prevenção estrutural e contenção de fogos (aceiros, corredores ecológicos, estradões florestais, faixas corta-fogos).

Só desse modo podem no futuro rarear os fogos e as aldeias, que têm sofrido uma sangria humana, poderão renovar-se demográfica e economicamente com base não só na atividade agrícola e florestal como noutras tais como as energias renováveis, a defesa do património e da cultura rural, o artesanato, o turismo, o lazer e as celebrações festivas. Sendo a floresta um bem económico e indispensável à conservação da biodiversidade e à minimização das alterações climáticas, ela deve ter uma gestão coletiva eficiente e preventiva de incêndios.

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