Tibete: os equívocos

A causa da independência tibetana assume uma atração mobilizadora. Mas a realidade é menos linear.

As opções autonómicas assumidas por povos em qualquer região do mundo inspiram, em geral, uma instintiva simpatia. O Tibete desperta uma simpatia acentuada por uma popularizada visão idílica do budismo contemplativo, de regiões distantes e exóticas e de um Dalai Lama simpático e Prémio Nobel da Paz. A causa da independência tibetana assume, assim, uma atração mobilizadora. Mas a realidade é menos linear. Nunca é sério analisar com olhos de demagogia. A maior contribuição para a paz é o realismo objetivo.

É redutor construir uma imagem santificada dos independentistas tibetanos ou uma visão demonizada dos chineses. A situação é mais complexa. Quer as autoridades centrais da China quer os independentistas tibetanos têm alguma razão e ambos cometeram erros profundos.

Olhemos, em primeiro lugar, o contexto histórico. Ao longo de cerca de 15 séculos a China desenvolveu com o Tibete uma relação fluida de influência, à semelhança do que sucedia com regiões mais periféricas, devido às grandes distâncias. Nos séculos XVI e XVII estrutura-se um regime de protetorado chinês do Tibete, sob um estatuto de grande autonomia. No séc. XIX a China envolve-se numa sucessão desastrosa de guerras com potências estrangeiras, nomeadamente a Guerra do Ópio, e, nesse período difícil, a China aligeira ainda mais o controle central no Tibete, reforçando a sua autonomia. Em 1912 é deposta a dinastia chinesa Qing e, nos momentos turbulentos da mudança, um conjunto de líderes tibetanos aproveitou para expulsar os representantes e militares do poder central chinês.

Durante as décadas seguintes, de instabilidade e guerra civil na China, essa situação no Tibete pouco se alterou até que, em 1951, após a vitória comunista, a China exige (ao Tibete como a todas as regiões, incluindo Hong Kong, Macau e Taiwan) o respeito pela integridade territorial do país.

Durante essas décadas em que líderes tibetanos expulsaram os representantes do poder central da China, a comunidade internacional sempre generalizadamente rejeitou reconhecer fundamento à tese da independência do Tibete e considerou este como uma província chinesa.

Mas já em 1949 os dirigentes chineses tinham proposto ao Dalai Lama um acordo que estabelecia uma enorme autonomia do Tibete, no contexto da China. A autonomia sugerida era muito extensa. Mas o Dalai Lama rejeitou radicalmente qualquer negociação. Na sequência dessa recusa de diálogo, as tropas chinesas entraram numa parte oriental do Tibete, insistindo numa negociação. Posteriormente, o Dalai Lama estabeleceu com as autoridades centrais da China um acordo que, por um lado, reconhecia a soberania chinesa no Tibete e, por outro lado, atribuía a este uma folgada autonomia e ao Dalai Lama o poder de administração corrente.

Apesar deste acordo subscrito pelo Dalai Lama, em 1959 ocorreu uma sublevação no Tibete, que foi debelada e que conduziu à extinção do sistema monástico. Seguiu-se o dramático e longo período da Revolução Cultural na China, que gerou grande violência repressiva também no Tibete, tal como se registou generalizadamente em toda a China.

A China cria um novo estatuto para o Tibete em 1965, aumentando a sua autonomia e considerando-a como uma região autónoma. Em 1978, Deng Xiaoping, iniciador das reformas chinesas, convida o Dalai Lama a visitar a China e a negociar um novo acordo que satisfaça ambas as partes. O Dalai Lama rejeitou liminarmente esse passo de aproximação e qualquer diálogo. Em 1989 a China convida novamente o Dalai Lama a visitar o país e, perante alguma recetividade deste, um grupo de tibetanos radicais que (nessa altura como agora) rodeiam e condicionam fortemente o Dalai Lama, forçaram-no a rejeitar o convite.

Entenderam esses tibetanos radicais (que não incluem o Dalai Lama) que se deveria manter o status quo. É uma perspetiva peculiar. Estes dirigentes radicais que se apresentam ao mundo com uma aura poética de quem deseja a paz, o entendimento, a negociação pacífica e uma solução para o Tibete assumiram repetidamente, na realidade, uma postura de recusa de diálogo ou de entendimento. Mas por que motivos entenderam esses minoritários tibetanos radicais que, em lugar de um eventual acordo com a China, seria preferível “manter o status quo”? Talvez assuste esses líderes tibetanos a perspetiva de, através de um acordo, passarem a deter a pesada responsabilidade de (genuinamente) gerir diariamente o Tibete, in loco, em vez de, como agora, passearem pelo mundo sob as luzes da ribalta mediática, com substanciais donativos internacionais (que provavelmente desapareceriam no dia em que a “causa tibetana” se diluísse num acordo com a China).

Simpatizo com a generalidade das pretensões autonómicas do Tibete bem como com o Dalai Lama, que tem sido forçado internamente a radicalismos que não sente. Mas confesso que não me agradam campanhas de mistificação que iludem deliberadamente a opinião pública.

A falta de um acordo definitivo formal sobre o Tibete deve-se basicamente a radicais de ambos os lados. O Dalai Lama tem sido, na maioria das situações, instintivamente aberto e conciliador, mas radicais (e interesses?) que o rodeiam têm inviabilizado sistematicamente o entendimento. E, no entanto, enquanto em público líderes tibetanos continuam a dizer ao mundo que pretendem a independência, de facto nos bastidores o entendimento já há muito foi centrado na autonomia, com o apoio do Dalai Lama. Por que motivo se induz a opinião pública mundial em erro, escondendo-se que, nos bastidores, a autonomia, não a independência, é já um facto consensualizado?

Nos últimos 50 anos, a crescente presença de chineses de outras regiões tem sido polémica, porque entendida como uma forma de as autoridades centrais de Pequim diluírem a população tibetana. Não sejamos ingénuos e reconheçamos que esse efeito se verifica, realmente. Mas também é necessário compreender que para, em poucas décadas, retirar o Tibete de um atraso feudal de séculos, isso seria impossível apenas com meios humanos, financeiros ou técnicos puramente tibetanos. Porquê? Simplesmente porque nem uns nem outros quase existiam no Tibete dessa altura.

Em 1950, no sistema feudal do Tibete, os nobres, os monges superiores e os funcionários mais elevados representavam apenas entre 3% e 6% da população mas detinham toda a terra, que era cultivada pelos camponeses sob um humilhante regime de impostos e tributos frequentemente absurdos. A taxa de analfabetismo ultrapassava os 90% e praticamente não existiam quadros. Assim, o arranque rápido do medievalismo e da pobreza era impossível por meios endógenos, sendo incontornável a deslocação de técnicos e quadros de outras regiões da China, bem como uma enorme injeção de capital e tecnologia do governo central de Pequim.

Há apenas cinco décadas, 98% da população tibetana trabalhava na agricultura atrasada, enquanto agora cerca de metade da economia já assenta no sector de serviços, que era quase nulo. Neste momento existe Internet e as televisões (inclusive as emissões diárias em língua tibetana) cobrem mais de 90% da população.

Em síntese, a presença das autoridades centrais, de quadros, de tecnologia e de capitais de outras regiões da China obviamente alteraram o milenar ambiente tibetano, simpático mas arcaico, bucólico mas paupérrimo, atrasado séculos. Muito mais que a presença de outros chineses, o que muda a mentalidade e os hábitos dos tibetanos é, pela primeira vez na sua história isolada, verem televisão que lhes mostra o mundo, outros hábitos e outras ideias, lerem jornais e os jovens utilizarem a Internet.

A maioria dos tibetanos antipatiza com a pouco simpática presença de chineses de outras regiões e defende uma sólida autonomia (muito poucos defendem a independência). Mas também a maioria reconhece que, sem a presença chinesa dos últimos 50 anos, não teria sido possível saírem do medievalismo, do isolamento e do atraso.

A cultura e a identidade de um povo são realidades lentamente evolutivas, não estáticas. Não é o paternalismo do governo de Pequim ou do Dalai Lama que tem o direito de decidir aquilo que é essa identidade. Esta decorre daquilo que o povo realmente pensa, sente e escolhe.

Talvez o maior drama dos tibetanos seja o facto de haver tanta gente no mundo que se arroga ditar aquilo que “deve ser“ a sua identidade e as suas escolhas de futuro.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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