O grande sedutor volta a mostrar as mulheres que vale a pena pintar

Modigliani trocou Florença e Veneza por Paris porque era lá que tinha de estar se queria ser artista. E foi, apesar do álcool e das drogas. Mais do que um filme, a sua vida dá uma ópera — a sua obra, muitas exposições. À Tate Modern, em Londres, chega em Novembro mais uma retrospectiva.

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Nu reclinado pintado pelo artista Amedeo Modigliani em 1919 e que pertence ao Museu de Arte Moderna, de Nova Iorque. Amedeo Modigliani
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Amedeo Modigliani fotografado por Marc Vaux Apic/Getty Images

Amedeo Modigliani não tinha dinheiro para nada, nem para morrer. Foram os amigos que fizeram do seu enterro um dos mais espectaculares que Paris viu naquela época. Largas centenas de pessoas acompanharam pelas ruas o carro fúnebre puxado por quatro cavalos negros, num cortejo que obrigou a polícia a interromper o trânsito. Foi sepultado no Cemitério Père Lachaise sob o olhar de amigos, artistas, poetas e críticos como Pablo Picasso, Max Jacob, André Salmon, Chaïm Soutine, Constantin Brancusi, André Derain e Fernand Léger, mas também das modelos e amantes que para ele posaram e de muitos dos empregados de mesa dos cafés de Montmartre e Montparnasse que tantas vezes o puseram na rua, completamente embriagado.

Chegou a Paris quando tinha 21 anos, decidido a ser artista. Tinha modos de burguês e vestia a condizer. Era bonito e sabia como usar isso a seu favor, com as mulheres e não só. É assim, sedutor, que o recorda André Salmon (1881-1969), poeta, escritor e crítico de arte francês que foi seu amigo e que em 1939 publicou Le Vagabond de Montparnasse: vie et mort du peintre A. Modigliani, biografia do pintor e escultor que durante muito tempo viu a sua obra secundarizada pela sua  histórica trágica. Uma tragédia à medida de uma ópera que começa, defende Salmon, precisamente no dia em que o italiano põe os pés em Paris, a cidade em que se transformaria num dos nomes mais populares das artes do século XX, mas também num viciado em drogas e álcool, sobretudo haxixe e absinto.

A Tate Modern, em Londres, um dos museus de arte moderna e contemporânea mais importantes do mundo, prepara-se agora para voltar a olhar para a obra de Amedeo Modigliani (1884-1920), deixando em segundo plano a vida que inspirou várias ficções no cinema e na literatura e que tanto tem fascinado os biógrafos.

A retrospectiva Modigliani (23 de Novembro a 2 de Abril de 2018), que está a ser apresentada como a mais ambiciosa exposição dedicada a este italiano alguma vez feita no Reino Unido, começa com a chegada do artista a Paris, em 1906, e termina com a sua morte prematura em 1920, passando em revista uma carreira em evolução constante — a de um homem nascido numa família burguesa de judeus sefarditas que começou a estudar pintura em 1898 em Florença e Veneza, que se encantou com Paul Cézanne, Henri Toulouse-Lautrec e Picasso na chegada a Paris e que acabou por encontrar a sua própria voz, em boa parte graças à sua passagem pela escultura, algo que deve a Brancusi.

As figuras de rostos ovalados e de pescoços invulgarmente longos, com olhos amendoados e de certa forma vazios, pintadas com cores abertas e delicadas, sobretudo quando a sua vida se aproximava do fim, tornaram-se sinónimos de Modigliani. Entre as 100 obras que a Tate Modern vai expor a partir do Outono, estarão certamente retratos em que se reconhece de imediato a mão do artista que era fascinado desde criança pela pintura antiga italiana, em especial a da escola de Siena, e que nunca abdicou da poesia: andava sempre com versos no bolso, recitava de cor Dante Alighieri e Paul Verlaine, retratou Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire e Jean Cocteau (este último acusou-o de o transformar numa caricatura, aliás) e teve entre as suas numerosas paixões pelo menos um poeta (Ezra Pound, escreve o crítico de arte Adrian Searle no diário britânico The Guardian) e duas poetisas, a inglesa Beatrice Hastings e a russa Anna Akhmátova, a mesma que desenhou vezes sem conta, que levou às galerias egípcias do Louvre e com quem ficava sentado à chuva, horas a fio, no Jardim do Luxemburgo.

“Sobre a Vénus de Milo dizia que as mulheres muitíssimo bem feitas, a quem vale a pena esculpir e pintar, parecem sempre de­sajeitadas quando vestidas” (Prosas Escolhidas e Poema Sem Herói, Relógio d’Água), escreveu Akhmátova a propósito de Modigliani, que conheceu em 1910, quando estava em Paris de lua-de-mel com o primeiro dos seus três maridos.

Mulheres nuas e censura

É precisamente de mulheres despidas que é feito um dos núcleos mais aguardados da exposição da Tate, co-comissariada por Nancy Ireson, uma investigadora que tem vindo a interessar-se sobretudo pelo contexto em que trabalham os artistas. Nele se podem encontrar dez dos 30 nus em grande escala que Modigliani terá pintado, uma série que fez parte da única exposição individual que o italiano teve em vida, na galeria parisiense de Berthe Weill, em 1917. Mostram mulheres num ambiente íntimo, caloroso, de grande sensualidade. Mulheres fortes, desafiadoras, escolhidas entre as muitas amantes e amigas do artista.

Essa exposição de 1917, lembram agora os jornais britânicos, causou grande escândalo, não porque as mulheres estivessem nuas – o nu feminino é uma constante na arte desde a Antiguidade – mas porque Modigliani resolveu pintá-las tal como eram. “O que chocou os seus contemporâneos não foi que estivessem nuas, mas o facto de terem pêlos púbicos”, disse à televisão pública britânica esta comissária.

Quando a galerista inaugurou a exposição, lembrou Ireson, fê-lo colocando na montra um dos nus femininos do italiano, o que levou a que um comissário de polícia que vivia do outro lado da rua, julgando-o um “atentado à decência”, tomasse uma atitude. “[A exposição] causou tal perturbação que alguns dos quadros tiveram de ser retirados”, acrescentou a comissária, explicando que, na época, as mulheres eram pressionadas a usar radiação para se depilarem.

O que a retrospectiva da Tate Modern pretende — e para isso contribui a quantidade e variedade de obras expostas — é mostrar que a sua linguagem evoluiu, explicou Nancy Ireson ao diário The Guardian, recorrendo a retratos de artistas com quem de imediato se cruzou na chegada a Paris, em 1906, como Pablo Picasso e Juan Gris, e a outros de Beatrice Hastings e do mexicano Diego Rivera.

A comissária reconhece que Modigliani está longe de ser consensual — para muitos é senhor de um vocabulário conciso e elegante, um dos rostos da modernização da pintura figurativa, e para outros um artista sobrevalorizado por causa da sua vida trágica e boémia que tornou difícil distinguir o mito da realidade — mas insiste que a obra que deixou vale por si, independentemente dos contornos operáticos do seu percurso.

Pacto de morte?

O pintor e escultor italiano morreu a 24 de Janeiro de 1920, aos 35 anos, com uma meningite tuberculosa e na mais absoluta pobreza. A sua saúde, frágil desde a infância (teve tifo e pleurisia em criança, o que o impediu de ter uma educação convencional), agravou-se com os excessos de álcool e drogas e com a falta de uma boa alimentação (garantem algumas biografias que à data da sua morte não teria quase dentes nenhuns). Acabou os seus últimos dias de agonia num hospital parisiense para indigentes. Em vida não vendeu praticamente nada e era comum ver-se obrigado a trocar desenhos por comida e outros géneros básicos.

Os relatos que os amigos fazem destes últimos dias distanciam-se muitas vezes, mas encontram-se num ponto — Modiglini vivia com a sua última companheira, a jovem pintora Jeanne Hébuterne, e a filha de ambos num apartamento miserável, com as paredes cobertas de bolor. No chão havia muitas garrafas de licor e latas de sardinha vazias. Hébuterne, que nascera num meio burguês, estava grávida de oito meses do segundo filho do casal. Os dois tinham-se conhecido num baile de máscaras e nunca mais se separaram.

Ela parecia enfeitiçada por ele mas não conseguiu salvá-lo de si mesmo, não conseguiu fazer com que Modigliani deixasse de sentir uma irresistível atracção pelo perigo e pelo abismo, escreve um dos seus amigos e mecenas, Paul Alexandre. Nem os tempos que viveram na Côte d’Azur, longe do bulício de Paris, tinham garantido ao pintor e escultor alguma serenidade (esta atmosfera parisiense do começo do século XX será recriada virtualmente na exposição da Tate Modern).

No dia seguinte à morte de Modigliani, Jeanne Hébuterne suicidou-se, atirando-se da janela do quinto andar. Teriam feito um pacto secreto, como defenderam alguns dos que os conheceram? Não se sabe. O é certo é que o artista costumava dizer que morrer era tão fácil como passar por uma porta. A doença tornou-lhe a tarefa tudo menos “fácil”. 

Se na época praticamente ninguém queria as suas pinturas, hoje a popularidade de Modigliani está em alta, e não apenas nas livrarias. Em 2015 um dos seus nus foi vendido em leilão por 158 milhões de euros, a um coleccionador cuja identidade não foi divulgada, isto mesmo quando alguns críticos e historiadores de arte vêem como “exagerado” o entusiasmo em torno da sua obra.

“O trabalho de Modigliani era, de certa forma, uma amálgama lânguida e tremendamente atraente do antigo e do novo que dificilmente nos parecerá ‘radical’ hoje mas que o era no seu tempo”, escreveu o crítico de arte Robert Hughes em 2004, a propósito de uma retrospectiva americana. “Apesar da absoluta indiferença com que inicialmente o trataram os coleccionadores franceses da época, a sua arte é hoje moderna aos olhos das pessoas que não gostam assim muito do modernismo”.

Adrian Searle é outro dos críticos que consideram o artista sobrevalorizado, embora reconheça que há nalguns dos seus retratos de camponeses anónimos uma “inesperada dignidade”. É o excesso de estilização, defende, que torna a sua arte imediatamente reconhecível, e esse excesso está presente até nos seus nus, que nunca surpreendem, diz Searle: “Um nu de Modigliani veste sempre as suas cores como se fossem um bronzeado falso. A luz verdadeira nunca cai sobre um nu de Modigliani; todos têm aquele brilho alaranjado que vem de dentro, as mesmas sombras amaciadas, a mesma fisicalidade de pin-up, suave, fácil.”

Na exposição que é inaugurada na Tate Modern em Novembro estarão dez dos nus deste artista que teve uma final trágico, mas que continua a seduzir. E desta vez é pouco provável que a polícia ande pelas galerias e mandar retirar pinturas das paredes.

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