Sobreviventes

Simone Veil foi uma das últimas testemunhas do que o nacionalismo extremo é capaz de fazer aos homens.

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1. Entrevistei-a já lá vão muitos anos, creio que em finais dos anos 80, numa visita que fez a Lisboa e ao Parlamento português. Foi a primeira e única vez que tive diante dos olhos, sem as imagens dos filmes e as descrições dos livros, o número gravado no seu braço esquerdo, fruto da sua passagem por Auschwitz e Bergen-Belsen. Podia tê-lo feito remover. Não quis. A sua vida política, a sua determinação, a necessidade de levar até ao fim as suas causas e as suas convicções e nunca fugir às responsabilidades nasceram no dia em que entrou num comboio para gado com a mãe e uma irmã em direcção a Auschwitz.

Tinha 16 anos, era de uma velha família judia francesa de Nice bem na vida. Quando desembarcou no campo de extermínio, alguém lhe sussurrou ao ouvido que devia dizer que tinha 18 anos — menos do que isso, seria inútil para os campos de trabalho e caminharia directamente para a câmara de gás. Uma “kapo” polaca e prostituta achou que “era bela de mais para morrer”. O pai e o irmão seguiram outro destino e ninguém sabe em que condições desapareceram. A mãe não resistiu à doença na caminhada de 70 quilómetros na neve em direcção a Bergen-Belsen, quando os alemães fugiam ao Exército Vermelho, que entrava na Polónia.

Ao contrário de tantos sobreviventes que não conseguiram conviver com a sua sobrevivência, Simone Jacob, depois Veil, fez dessa sobrevivência a força que a acompanhou em tudo aquilo que fez. Era uma espécie de dever. Seguiu a magistratura e o conselho mais importante da sua mãe: para seres independente, tens de trabalhar. A memória da Shoah, os direitos das mulheres e a Europa foram as suas três grandes causas.

Não deixa de ser notável que a ministra da Saúde de um governo de centro-direita, o primeiro a que pertenceu entre 1974 e 1979, tenha ousado travar a batalha pela legalização do aborto, numa altura em que era ainda um tabu. Fora uma promessa eleitoral de Giscard d’Estaing, que ela se encarregou de cumprir. Perdeu amigos e colegas de governo e enfrentou uma campanha sem piedade. Ganhou. Transformou-se num exemplo.

Nunca deixou de lutar pela memória dos judeus franceses, 60 mil dos quais foram enviados para os campos de concentração. Denunciou com palavras serenas e rigorosas as sucessivas vagas de anti-semitismo que atingiram o seu país. Sabia que era preciso lembrar sempre, mas sem confundir o mal absoluto do Holocausto com o anti-semitismo que emergia quase sempre em função do que se passava no Médio Oriente. Amou sempre a França. O número no seu antebraço, a sua figura serena e o seu inesquecível olhar azul sombrio ficaram gravados na minha memória. Não era empatia, que não tinha, era uma sobriedade difícil de penetrar e uma firmeza que emanava da sua figura serena.

Em 1979, Giscard desafiou-a a candidatar-se às primeiras eleições por sufrágio universal para o Parlamento Europeu. Foi a sua primeira presidente. Ela própria um símbolo da ideia que esteve na base da integração europeia: “Nunca mais.” Para quem sobreviveu, a Europa era um imperativo. E Estrasburgo o lugar perfeito de um tempo ao qual ninguém queria regressar. A cidade alsaciana na fronteira entre a França e a Alemanha que foi sendo francesa e alemã ao longo da trágica história da primeira metade do século XX. Até à Comunidade Europeia, criada para abolir o significado de todas as fronteiras. Veil foi uma das últimas testemunhas do que o nacionalismo extremo é capaz de fazer aos homens, retirando-lhes toda a humanidade. Aos carrascos e às suas vítimas. Não havia humanidade nos campos, apenas seres transformados em fantasmas. Esqueletos sem vida embora ainda vivos. Ninguém poderia ter imaginado. Veil sobreviveu para dar um sentido à sobrevivência.

2. Primo Levi, depois de ter escrito Se isto é um Homem (1947), pôs termo à vida em 1987. Jorge Semprúm, que nasceu espanhol e morreu francês, foi preso e enviado pela Gestapo para Buchenwald, o destino dos resistentes à ocupação nazi, e apenas conseguiu escrever sobre a sua experiência muitos anos depois do fim da guerra. A Escrita ou a Vida foi uma das suas últimas obras. Robert Antelme, combatente da Resistência francesa, casado com a escritora Marguerite Duras, foi preso em 1944 e enviado para Buchenwald. Regressou para constatar que era impossível comunicar com aqueles que não estiveram lá. Escreveu apenas um livro: L’Espèce Humaine, onde registou o dia-a-dia do campo de concentração, como se o estivesse a observar de fora, distante da sua própria existência, reduzindo as palavras à mera descrição dos factos. Não era a mesma pessoa. A mesma vida não lhe era permitida. Página a página, a sua obsessão era provar que a degradação extrema não conseguira aniquilar o ser humano. Separou-se de Duras, cuja obra La Douleur transmite o mesmo sentimento de distância por vezes intransponível. Simone Veil sobreviveu. Para dar testemunho. Não pela escrita mas pela acção. “Sou o que aqueles anos fizeram de mim.” Uma rocha. Uma vida para que ninguém esqueça.

3. Ontem em Estrasburgo, pela primeira vez desde a fundação da Comunidade, a Europa organizou o seu primeiro “funeral de Estado”. No centro do gigantesco hemiciclo do Parlamento Europeu, o caixão de Helmut Kohl apenas coberto com a bandeira europeia, recebeu a última homenagem à sua dimensão política e humana. Mal-amado no seu próprio país, reconhecido pelos europeus como uma figura política central da construção europeia, na sua mais importante dimensão: impedir o regresso dos demónios que por duas vezes destruíram a Europa e mergulharam o mundo em duas guerras mundiais. Veil e Kohl, a França e a Alemanha, a sobrevivente dos campos e o jovem que ajudou a enterrar os mortos na sua cidade natal na Renânia, bombardeada pela aviação aliada, cuja idade o poupou ao recrutamento. Mas que nunca esqueceu.

Ontem estiveram em Estrasburgo os líderes ocidentais com quem conviveu durante e depois do fim da Guerra Fria. Bill Clinton, Felipe González, Jean-Claude Juncker, a quem chamava “junior”, Medvedev, o primeiro-ministro russo exibindo a face mais aceitável do regime de Putin. Clinton, o grande comunicador, resumiu tudo numa frase: “Kohl deu-nos a oportunidade de participar em algo maior do que nós próprios, maior do que os nossos mandatos, maior do que as nossas carreiras.” O antigo Presidente americano costumava ir com ele a uma pizzeria de Georgetown, para ambos se deliciarem com um número pouco recomendado de pizzas e outras espécies de junk-food. “Era a única pessoa que tinha mais apetite do que eu.”

González e Guterres eram os seus dois “enfants terribles”. Queriam sempre mais e Kohl estava quase sempre na disposição de passar um cheque. Era a sua grande arma para resolver conflitos. Com ele, a Alemanha ainda não era totalmente um país “normal”, como proclamou Gerhard Schroeder quando o destronou, em 1998. Reconhecia a dívida da Alemanha aos aliados, quando lhe permitiram juntar-se ao concerto das nações civilizadas pouco depois do fim da guerra. Emmanuel Macron e Angela Merkel discursaram na cerimónia, ao lado dos velhos companheiros de Kohl. O chanceler prometeu-lhes uma Alemanha europeia e não uma Europa alemã. Cumpriu. Como Veil. Resta saber quem estará agora à altura do testemunho. 

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