Foram crianças com cancro. E contrariam a ideia de que “não se sai daqui vivo”

Sofia Sousa e Andreia Barros são duas das caras da exposição 40 Anos, 40 Rostos de Esperança, do Serviço de Pediatria do IPO do Porto. Como se cresce num local assim?

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“Com força e pensamento positivo, até o cancro conseguimos vencer”, assegura Sofia Sousa, 16 anos, o rosto de olhos grandes e brilhantes, que representa o ano 2003 na exposição de fotografia que é inaugurada neste sábado, no IPO do Porto. Mais 39 antigos doentes dão a cara por cada um dos anos do Serviço de Pediatria da instituição. Como a autora das fotografias, Andreia Barros, de 31, que gostaria de “contrariar a ideia errada de que não se sai daqui vivo”.

A verdade, diz, é que muitas das crianças que por aqui passaram nestas quatro décadas são “agora adultas, já têm filhos e uma carreira profissional”.

Quando Sofia Sousa, de Paredes, e Andreia Barros, de Paços de Ferreira, percorrem os corredores do IPO, não sentem as pernas a tremer nem carregam “o coração nas mãos”. É como “uma segunda casa” para elas, com 40 camas, que recebe, por ano, cem crianças e onde a taxa de sobrevivência é da ordem dos 80%. Aqui viveram e brincaram. “Foi a nossa casa durante muito tempo e no primeiro ano só fomos, durante duas semanas, à nossa em Paredes”, conta Alexandrina Dias, a mãe de Sofia.

Sofia deu entrada no IPO com 20 meses, depois de lhe terem diagnosticado “massa nos pulmões” durante uma ida à urgência num hospital. “Foi um choque. Fomos lá porque ela tinha engolido uma moeda e nem queríamos acreditar que uma criança tão pequenina teria neuroblastoma torácico”, lembra a mãe. “Mas a doença já estava muito avançada. E pedi para ela ir para um sítio onde a curassem.”

No IPO passou parte da infância até entrar na escola primária, entre um autotransplante de medula óssea aos três anos, tratamentos e muitos exames. Uma nova recaída aos cinco obrigou-a a fazer novamente quimioterapia. “Entrei em pânico quando me mostrou uma mão-cheia de cabelos. Ela não percebia bem o que se passava”, conta Alexandrina Dias.

Sofia tem “flashes de memória” dessa altura, assim como de quando esteve em isolamento e fez o autotransplante da medula óssea. “Recordo o carinho dos médicos, dos enfermeiros e das educadoras.”

A agulha da borboleta

Os tempos de angústia já lá vão: os tratamentos acabaram há dez anos e foram substituídos pelas consultas e pelos exames de rotina anuais. As mazelas resultantes da quimioterapia são visíveis: “Perdi parte da audição e tenho de usar uma prótese, além dos problemas nos dentes”, conta Sofia, enquanto a mãe atira: “Graças a Deus, isso é o menos!” Afinal, reitera a filha: “Sinto-me muito feliz, porque venci a doença.” Não é à toa que num móvel, com um aquário, na sala lúdica do Serviço de Pediatria, se lê: “Por mais longa que seja a noite, o sol volta sempre para brilhar.” Hoje, Sofia é uma aluna de sucesso na escola que quer ser psicóloga.

É tudo uma questão de “acreditar”, palavra que salta à vista num dos desenhos coloridos das paredes do serviço, assinados pelos doentes. Para Sofia e Andreia, a esperança mora ali e é essa a mensagem que neste sábado a Pediatria do IPO quer passar nas comemorações dos seus 40 anos com a exposição.

Por estes dias, Andreia Barros voltou “ao local onde foi feliz apesar da doença” e fá-lo sempre que pode, porque faz parte do grupo de veteranos constituído, em 2012, por ex-doentes para apoiar pais e crianças com os testemunhos.

“Eu contava os dias que faltavam para a próxima ida ao IPO, porque tinha saudades das brincadeiras e do carinho da equipa médica e das educadoras.”

Guarda na memória os balões feitos a partir das luvas e de todas aquelas vezes em que lhe diziam que iam colocar a agulha da borboleta para a convencerem a por o soro. “Parecia mesmo uma borboleta.”

Por tudo isto, Andreia nem pestanejou quando lhe perguntaram se queria fotografar os rostos de outros 40 ex-doentes de cancro que passaram pelo Serviço de Pediatria e que contam histórias “com um final feliz”. É esse o objectivo da exposição de fotografia 40 Anos, 40 Rostos de Esperança, no serviço do IPO.

A história de Andreia começou quando nasceu com um tumor maligno na cabeça com diagnóstico de “morte certa”. Hoje é educadora de infância, tem um estúdio de fotografia e tem andado numa roda-viva com os médicos, enfermeiros e educadoras para estar tudo a postos para a inauguração da exposição. “Trouxe a iluminação, a tela de fundo e o material fotográfico do meu estúdio”, conta, entusiasmada.

Tem sido um turbilhão de emoções: “Acabou por ser um reencontro de pessoas que já não se viam havia muitos anos e uma partilha de experiências.” Ainda que as suas memórias de quando teve cancro sejam as da mãe, porque Andreia deu entrada na Pediatria com apenas seis meses com o diagnóstico de fibrossarcoma. “O importante é que foi aqui que me salvaram a vida quando me removeram o tumor. Já tinha sido operada duas vezes noutro hospital.”

Às vezes ainda se assusta: “Sempre que aparece um sinal ou um simples abcesso, é logo motivo de alarme para ir ao IPO por precaução.”

É por todos estes doentes que “a equipa do IPO dá o litro”, diz o director do Serviço de Pediatria, Armando Pinto.

“Sempre que um novo doente dá entrada é como se fosse um incêndio em que temos de activar todos os canais para apagar o fogo”, explica Armando Pinto.

A parte relacional humana é essencial num  serviço “que agora tem melhores instalações, meios auxiliares de diagnóstico e medicamentos, e tratamentos novos”, prossegue. Há mais esperança de vida numa instituição que faz mais de cinco mil consultas anuais na consulta externa e mais de 600 internamentos por ano para quimioterapia ou operações. “Há doentes, dos zero aos 18 anos, que andam aqui há dez anos a serem acompanhados”, diz Armando Pinto. “Um terço das crianças que surgem com cancro em Portugal tem menos de cinco anos de idade. E uma das características do cancro da criança é que são tumores de crescimento rápido.”

Os dois tipos mais comuns são leucemias e linfomas que aparecem juntos em mais de um terço das crianças. Seguem-se depois os tumores do sistema nervoso central.

Taxa de sobrevivência era 50%

O pediatra Bernardo Sodré, o então primeiro e único médico do serviço em 1977, foi o fundador desta unidade no IPO que começou com um gabinete de enfermagem, dois consultórios e um hospital-de-dia, distribuídos por 50 metros quadrados. Muito mudou deste então. “Sob a minha responsabilidade estiveram duas mil crianças ao longo dos 27 anos à frente do serviço”, conta o médico que também foi presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria. “Nos anos 1960 e 1970 a taxa de sobrevida, para a generalidade dos casos, não ia além dos 50%. Hoje já ronda os 70 por cento.”

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