Governo: suspensão da RTP, RDP e Lusa na Guiné-Bissau é "atentado à liberdade de imprensa"

Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Cultura portugueses afirmam que "ameaça" do Governo guineense é "inaceitável". Embaixador da Guiné-Bissau já foi chamado para “para lhe ser transmitida a gravidade do ocorrido”.

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PEDRO CUNHA/Arquivo

O Governo português classifica a intenção do executivo guineense de suspender as actividades da RTP, RDP e Agência Lusa na Guiné-Bissau como “inaceitável” e diz que se trata de “um atentado à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa”.

O ministro da Comunicação Social guineense anunciou nesta sexta-feira a suspensão das actividades da RTP, da RDP e da Agência Lusa na Guiné-Bissau, alegando a caducidade do acordo de cooperação no sector da comunicação social assinado entre Lisboa e Bissau.

Em conferência de imprensa, o ministro guineense, Vítor Pereira, informou que a partir da meia-noite de hoje em Bissau (1h em Lisboa) ficam suspensas todas as actividades naquele país dos três órgãos portugueses até que o Governo de Lisboa abra negociações para a assinatura de um novo acordo. 

Em comunicado conjunto, os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Cultura lamentam "profundamente a ameaça" do Governo guineense, afirmando que “este tipo de ultimatos é inaceitável, especialmente quando se trata de dois países ligados por laços tão estreitos, como Portugal e a Guiné-Bissau”. “Em momento algum Portugal se recusou a analisar os méritos de qualquer proposta de instrumento bilateral com as autoridades guineenses”, lê-se ainda na nota escrita.

"Tal intenção constitui igualmente um atentado à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, princípios expressamente consagrados na Constituição da República da Guiné-Bissau”, defendem ainda os ministérios lusos.

O Governo português contesta ainda os argumentos apresentados pela Guiné-Bissau: “Apesar de poderem ser denunciados por qualquer das partes a qualquer momento, dentro das regras e nos prazos expressamente consagrados, nenhum dos dois instrumentos prevê um prazo para cessação de efeitos. Assim, não só não se aplica a alegada caducidade, como também não foi até à data recebida qualquer notificação por parte da República da Guiné-Bissau denunciando especificamente qualquer dos acordos”.

E dá como exemplo a relação entre o Governo e os órgãos de comunicação social em causa em Portugal: “O Governo português não exerce qualquer tipo de controlo editorial sobre a RTP, a RDP e a Agência Lusa, as quais actuam com a mesma independência,imparcialidade e profissionalismo em Bissau com que actuam em todos os países onde estão presentes”.

O Governo português informa ainda que o embaixador guineense já foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros “para lhe ser transmitida a gravidade do ocorrido”.

Mais tarde, em Serralves, no Porto, o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva reafirmou aos jornalistas que a decisão, a acontecer, "é um atentado à liberdade de expressão". "O ponto não é o prejuízo para Portugal. Que é nenhum. Os mais prejudicados são aqueles que beneficiam da liberdade de expressão", disse.

Analista e Sociedade Civil guineenses dizem que decisão pretende silenciar vozes críticas

O argumento apresentado pelas autoridades da Guiné-Bissau para suspender as actividades da RTP, RDP e Lusa a partir de sábado é "apenas um pretexto" para "silenciar vozes eventualmente críticas" ao regime "ilegal" do Presidente, disse um analista guineense.

Em declarações à agência Lusa, o comentador político, poeta, jornalista, escritor e ainda vice-presidente da Associação de Escritores da Guiné-Bissau (AEGB), Tony Tcheka, considera que, independentemente de uma alegada caducidade do contrato, "não há razões válidas" para que o assunto não seja devidamente tratado no quadro de uma cooperação bilateral, "que é histórica".

"O que está a acontecer com a RTP, RDP e Lusa enquadra-se num processo de subversão da ordem estabelecida. O Governo constitucional e eleito de Carlos Gomes Júnior foi derrubado com a fora das armas, com a participação de muitos civis que, hoje, aparecem novamente ou no poder ou na periferia desse poder", argumentou, referindo-se ao golpe de Estado de Abril de 2012.

"Há uma tentativa de silenciamento dos media guineenses, há uma ordem praticamente dada pelo chefe de Estado (José Mário Vaz) para que os jornalistas guineenses enveredem pela autocensura e o que está a acontecer com a RTP, RDP e Lusa é exatamente a outra face da mesma moeda, que visa silenciar vozes contrárias e críticas e, sobretudo, não permitir que a verdade seja tratada com idoneidade, ética e deontologia", acrescentou.

No dia 26, José Mário Vaz pediu aos jornalistas para contribuírem para a construção do país, evitando passar mensagens que ponham em causa a Guiné-Bissau: "A partir de agora peço aos jornalistas para passarmos só boas mensagens da Guiné-Bissau. Ajudarmos a Guiné-Bissau".

Em declarações à Lusa, Tony Tcheka lembra o "grande apoio ao serviço público" prestado por Portugal e pelos três órgãos de comunicação social portugueses presentes na Guiné-Bissau praticamente desde a independência na cobertura de conflitos, golpes de Estado e outros episódios do país, considerando que RTP, RDP e Lusa constituem um "exemplo inigualável e imbatível" da história guineense. "Não há clareza por trás da decisão de usar este pretexto (de caducidade do acordo) para silenciar órgãos de comunicação social", frisou.

"Estamos perante uma situação, sobretudo até porque o próprio Presidente já admite convocar eleições antecipadas, para criar condições para que tudo seja feito, não pela força das armas, mas através de ações palacianas, que visam não só enfraquecer a oposição como a própria comunicação social. É um plano maquiavélico", afirmou.

Para o autor do livro de poesia "Noites de Insónia em terra Adormecida", a Guiné-Bissau tem um governo criado "à margem da lei, dos acordos internos (Constituição) e internacionais (Acordo de Conacri)".

"É uma atitude de desespero, mais uma jogada a ver se consegue passar impune pelo temporal que está a assolar a Guiné-Bissau, em que (o Presidente) está a passar pela chuva sem se molhar, apontando sempre o dedo aos outros", sustentou.

"Há um plano maquiavélico que prejudica o país e que tem estado a adiar o desenvolvimento da Guiné-Bissau. Todas as vozes, independentemente da cor política, devem-se levantar e opor-se a esta tentativa que configura, em última análise, um golpe de Estado palaciano", concluiu.

O presidente do Movimento Nacional da Sociedade Civil para a Paz, Democracia e Desenvolvimento da Guiné-Bissau lamentou também a decisão: "As organizações da sociedade civil da Guiné-Bissau lamentam profundamente esta triste notícia para nós", afirmou Jorge Gomes à agência Lusa, referindo que se o movimento tivesse conhecimento antecipadamente teria tomado a decisão de abordar o primeiro-ministro no sentido de "arranjar uma outra solução".

Para Jorge Gomes, a decisão "é uma forma de silenciar a população guineense que tem tido contacto com os conterrâneos em Portugal diariamente". "Infelizmente, quando tivemos conhecimento da notícia, não conseguimos falar com o senhor primeiro-ministro e dizem que o prazo termina hoje à meia-noite [mais uma hora em Lisboa]", referiu o responsável.

Questionado sobre se esta decisão atenta contra a liberdade de imprensa na Guiné-Bissau, o responsável respondeu: "Precisamente, é o que se está a constatar".

"É a forma de silenciar os guineenses, mas vamos tentar falar com o sr. primeiro ministro na segunda-feira a ver se a situação se resolve de uma outra forma", reafirmou.

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