Desenvolvimento e segurança: os simplismos

A demagogia frequentemente impede reais soluções, porque esconde os reais problemas essenciais.

Muitos desafios do desenvolvimento humano no mundo são intuitivamente percetíveis. Contudo, nem sempre os problemas mais óbvios são os mais graves. Frequentemente, as terapêuticas definidas são tão politicamente corretas como genuinamente ineficazes, alimentando mais o ego e a consciência dos presumíveis filantropos que o estômago dos pobres. As boas intenções são sempre louváveis, mas a adequabilidade das soluções é questionável.

As próprias respostas aos problemas da humanidade partem, com surpreendente frequência, de análises de base que estão já erradas ou parcialmente desfocadas. Justamente, a generalidade dos indivíduos preocupa-se com o investimento em armamento. O que instintivamente impressiona é, essencialmente, o aparatoso gasto em sofisticados aviões, armas nucleares, mísseis e outras classes de armamento de grande poder destruidor. Mas, na realidade, em média anual ao longo das últimas décadas o número de vítimas causadas por todo esse poderosíssimo equipamento de guerra foi muitíssimo inferior ao número de mortes provocadas por pequenas e simples armas.

Por ano, as pequenas armas ligeiras matam, em média, cerca de 300.000 pessoas em situações de guerra e 200.000 pessoas em situações comuns. Enquanto é fácil e mediático criticar a produção de grandes equipamentos de guerra por nações poderosas, em cada ano são produzidas cerca de oito milhões das mencionadas armas ligeiras, extremamente destrutivas no seu conjunto.

Nos últimos 60 anos nenhum ser humano foi morto por uma bomba nuclear mas muitos milhões morreram depois de serem esquartejados vivos com machetes e facas. Mas para os falsos pacifistas é muito mais mediático e politicamente útil para a imagem pessoal protestar ruidosamente contra os “poderosos do mundo”. A demagogia frequentemente impede reais soluções, porque esconde os reais problemas essenciais.

Enquanto é fácil realizar manifestações mediáticas contra o poderio militar das nações mais desenvolvidas, ninguém se maça em realizar essas manifestações para combater a realidade que consiste na existência de cerca de 500 mil crianças no mundo que foram compulsivamente incorporadas como soldados em movimentos de guerrilha e exércitos irregulares em múltiplos países em desenvolvimento.

É também óbvio que devemos terminar os conflitos armados. Mas a enorme ingenuidade de políticos, académicos e cidadãos leva-os a nem se preocuparem com problemas de que não se apercebem. Esse é o caso, por exemplo, de em muitos conflitos no “Terceiro Mundo”, que se arrastam por muitos anos, os combatentes desmobilizados no final do conflito se transformarem em civis que não sabem fazer nada para além de combater. É, nesses casos, sempre imperioso um programa de formação profissional (bem como o pagamento da sua subsistência e do seu emprego), sob pena de esses ex-combatentes de tornarem em gangues de criminosos e milícias a soldo.

Nos países desenvolvidos lamenta-se cada posto de trabalho perdido em deslocalizações de indústrias para outros países, mas o outro lado desse triste facto é a criação de postos de trabalho em populações mais pobres que necessitam (ainda mais) desses postos de trabalho. A generosidade para com o desenvolvimento dos países pobres é fácil quando não afeta os demagogos do mundo desenvolvido.

De qualquer modo, vivemos um período histórico de rápido crescimento da produtividade industrial no mundo. Atualmente, em média, um trabalhador industrial produz, numa semana, o que no séc. XVIII um trabalhador produzia em quatro anos. Paralelamente, em média, o consumo doméstico no mundo quadruplicou em apenas 40 anos, entre 1960 e 2000.

É fácil, para políticos e ambientalistas, criticar o esbanjamento de energia, quando o fazem a partir de gabinetes bem climatizados e confortáveis. Na célebre Cimeira do Rio de Janeiro, um ponto angular da política ambiental mundial, era acutilante a condenação dos sistemas de ar condicionado destruidores do ozono atmosférico, mas os mesmos delegados que dissertavam sabiamente sobre este problema faziam-no num gigantesco espaço ultra-refrescado exatamente com esse tipo de equipamentos. Quando falhou o sistema numa das salas de trabalho secundárias os seus ocupantes mudaram-se para outra mais refrigerada.

É sempre fácil exortar a sacrifícios dos países ricos para resolver dramas dos países pobres. Subscrevo essa postura. Mas quando se trata de sacrifícios reais poucos se disponibilizam para mudar o seu estilo de vida num país desenvolvido.

Mesmo riscos que parecem difusos como o do aquecimento global podem vir a criar graves problemas pouco ou nada analisados neste momento. Por exemplo, a elevação de temperatura em zonas tropicais poderá conduzir à redução da produtividade das culturas de cereais em cerca de 30% ao longo dos próximos 50 anos. Por fim, embora as guerras provoquem enorme sofrimento, as doenças transmissíveis têm causado 14 vezes mais mortes que todos os conflitos armados em conjunto.

Em síntese, quando se torna facílimo e vulgarmente chique falar nos desafios da humanidade, verifica-se também que as leituras mais mediatizadas são, em geral, as mais fáceis mas também as mais simplistas. Infelizmente, os desafios são muito variados, profundos e interdisciplinares e exigem respostas inteligentes, mais elaboradas e mais realistas que as dos discursos da mediatização fácil.

A demagogia populista de políticos e imprensa talvez seja uma endémica mas grave ameaça coletiva. O culto do aparato, do linchamento na praça pública e da obsessão da superficialidade fácil limitam a inteligência, a seriedade e a imaginação criativa para melhorar o mundo.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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