Nazis: o passado foi exorcizado no exército alemão?

Investigações por causa de militar que se fez passar por refugiado trouxeram à tona uma relação por vezes problemática do actual exército com o seu antecessor do tempo de Hitler.

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Militares alemães integrados num dos novos batalhões de resposta rápida da NATO na Europa de Leste FILIP SINGER/EPA

A Alemanha está a levar a cabo uma investigação alargada nas suas Forças Armadas por potenciais inclinações nazis de alguns soldados e uma ligação reverencial à Wehrmacht, o exército de Hitler.

Tudo começou com um caso extraordinário, o de um militar que se inscreveu como refugiado, levando uma vida dupla que se pensa ter tido como objectivo realizar um ataque em nome da sua identidade falsa, a de um sírio a pedir asilo. O militar, Franco A., foi detido no final de Abril, junto com um segundo soldado e um terceiro cúmplice, civil.

O caso parece ter sido isolado mas trouxe à superfície a relação nem sempre simples entre as actuais forças armadas, a Bundeswehr, e a sua antecessora, a Wehrmacht. Terá o actual exército um problema com a extrema-direita? Ou será “cego do olho direito”, desvalorizando tendências extremistas dos seus militares?

Políticos, comentadores e jornalistas têm debatido o assunto. O especialista militar Berthold Meyer diz, numa troca de emails com o PÚBLICO, que há três questões: quão grande é o número dos que se podem considerar de extrema-direita entre os militares e se há alguns destes envolvidos em planos concretos de ataques; a segunda é como se pode excluir jovens com orientação de extrema-direita das Forças Armadas; e a terceira é como é que, através de medidas de formação política e nas regras de “Innere Führung” [liderança interna, em tradução livre, um conceito que inclui educação cívica] se podem fortalecer os princípios democráticos entre os militares.

"Caça às bruxas", dizem

O Governo ordenou investigações, vistorias às casernas para retirar possíveis símbolos da Wehrmacht, quer ainda rebaptizar alguns quartéis que ainda têm nomes de militares do tempo de Hitler, e prometeu ainda rever o código de tradição da força, de 1965 e actualizado em 1982.

O processo está, no entanto, a deixar muitos militares desconfortáveis e a causar problemas à ministra da Defesa, Ursula von der Leyen, uma das importantes figuras na CDU e que é vista como uma possível sucessora de Angela Merkel. O caso ocorre quando há outros problemas nas Forças Armadas: uma investigação por abusos sexuais e mais um adiamento num programa de compra de armas, o terceiro de Von der Leyen.

Alguns queixam-se de uma “caça às bruxas”: a retirada de uma fotografia do antigo chanceler Helmut Schmidt enquanto jovem soldado da Wehrmacht de uma academia militar foi criticada por alguns como um exagero. A fotografia foi reposta.

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A ministra da Defesa alemã,Ursula von der Leyen, uma das importantes figuras na CDU Vincent Kessler/REUTERS

A relação entre a força que serviu Adolf Hitler e o exército que se seguiu é delicada. Se a condenação dos nazis, Gestapo, e Waffen-SS é inequívoca, o papel do Exército, que era de recrutamento obrigatório é, para alguns alemães, mais ambíguo. Isto apesar de haver extensa documentação sobre crimes de guerra da Wehrmacht contra judeus, civis e prisioneiros de guerra na Europa de Leste e Rússia.

Nos princípios fundadores da Bundeswehr diz-se que esta não pretende ser uma sucessora da Wehrmacht, mas na investigação foram encontrados resquícios de alguma reverência — capacetes numa caserna, imagens noutra. Símbolos como a suástica são proibidos na Alemanha excepto em contextos educacionais, e os objectos nazis nas casernas deveriam ser acompanhados de uma explicação.

O Ministério da Defesa anunciou, semanas antes do caso Franco A. ser descoberto, que investiga 275 casos de acusações de racismo ou expressão de ideias de extrema-direita de militares nos últimos seis anos, que vão desde saudações nazis a manifestações de racismo. Ainda que seja uma minoria numa grande força de 180 mil pessoas, a maioria dos casos são do último ano e meio.

Assim nasce um exército

Há quem olhe agora para a génese das actuais Forças Armadas como tendo um papel em tudo isto. Após a derrota na II Guerra Mundial, as Forças Armadas alemãs foram desmanteladas. Mas com a crescente tensão entre o Ocidente e a União Soviética, a adesão da então República Federal da Alemanha à NATO exigia um exército.

Tentou-se, no entanto, criar uma força diferente, com uma outra tradição, baseada no conceito de que os militares seriam como que “cidadãos em uniforme” segundo o conceito de "Innere Führung".

“Quando as Forças Armadas foram formadas de novo em 1955, houve um dilema: por um lado era desejado um distanciamento do passado nazi, por outro era preciso pessoal com experiência militar”, diz Meyer. “Houve o cuidado de, na recolocação de alguns antigos oficiais da Wehrmacht, não empregar ninguém que se soubesse ter sido culpado de crimes de guerra. Apesar de tudo, entraram muitas pessoas que vinham da tradição do militarismo alemão — que já existia antes de 1933.”

O então chanceler, Konrad Adenauer, calou as críticas sobre os oficiais: “Não me parece que a NATO aceite generais de 18 anos”, disse.

O conceito de "Innere Führung", criado para conter este problema, “resultou apenas em parte”, considera Meyer, sendo especialmente desafiado quando há missões como as que o Exército alemão leva a cabo no Afeganistão, um contexto de guerra em que as ordens têm de ser cumpridas e não desafiadas.

O actual código deixa bastante autonomia aos comandantes sobre como a preservar a tradição, e há alguns que olham para actos da Wehrmacht com nostalgia.

O caso Franco A.

Enquanto isso, muito pouco se sabe sobre o caso que provocou as investigações. Meyer diz que o facto de haver alguns soldados com inclinações de extrema-direita não é surpreendente — “É verdade que em geral vão para o Exército pessoas com uma grande predilecção por armas, e aqui incluem-se muitas de extrema-direita”.

“Fiquei muito espantado, no entanto, pela grande quantidade de energia que este soldado gastou para registar uma segunda existência como refugiado sírio”, sublinha. “Ao que tudo indica, o objectivo era que se o seu plano resultasse, houvesse uma suspeita sobre um sírio, para virar a opinião pública contra os refugiados.” Durante meses, Franco A. fez uma vida paralela entre o quartel e o lar de refugiados, foi à entrevista de asilo, escondeu uma arma numa casa de banho do aeroporto de Viena (foi descoberto quando a tentou recuperar).

O processo levantou ainda questões sobre a avaliação dos pedidos de asilo: Franco A. apresentou-se como refugiado sírio mas não falava árabe; a revista Der Spiegel dizia que a intérprete o considerou “pouco credível”. Franco A. disse falar francês, mas respondeu a perguntas feitas em alemão sem necessidade de tradução. Em sequência deste caso, as autoridades estão a reavaliar milhares de pedidos de asilo.

Por outro lado, Meyer considerou estranho que o militar “não tenha sido expulso das Forças Armadas já há anos por causa do seu trabalho de mestrado com um ponto de vista extremista”. A tese de 2014 de Franco A. foi classificada por um professor como inadmissível, e este reportou o caso aos superiores do militar — mas Franco A. fez uma nova tese e manteve-se nas Forças Armadas.

Se o processo de detectar extremistas no exército pode parecer ineficaz, também a de simpatizantes de extrema-direita nas Forças Armadas não era especialmente supervisionada. O Governo prometeu um exame obrigatório para os candidatos que deverá entrar em vigor no Verão (originalmente pretendia detectar potenciais terroristas) e ainda a adopção de um novo código de tradição até ao Outono.

Berthold Meyer chama a atenção para a politização do caso — com o país a preparar-se para as legislativas do final de Setembro é provável que a questão não desapareça.

mguimaraes@publico.pt 

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