A ilusão da paz perpétua na Europa pós-nacional

A dissolução da nação está a matar gradualmente os nacionalismos. Resta saber se não abriu nova caixa de pandora da qual o islamista-jihadista é um dos piores males e já anda à solta em solo europeu.

1. Nos anos de 2015 e 2016 a França foi o Estado europeu mais fustigado por actos de violência e terror de islamistas-jihadistas. No ano de 2017 o Reino Unido transformou-se no terreno principal desses ataques. As grandes cidades, como Londres e Manchester, foram palco de bárbaros atentados. Mas há um dado novo: o ataque na área da mesquita de Finsbury Park, em Londres, de 19 de Junho de 2017. Foi perpetrado com uma carrinha contra a população civil que se encontrava pacificamente na rua. Mas não foi por islamistas-jihadistas contra europeus nativos, como usualmente. O alvo, desta vez, foram muçulmanos britânicos. O suspeito é um britânico nativo, Darren Osborne, da região Cardiff. Mimetizou as técnicas e alvos dos islamistas-jihadistas. A sua radicalização terá ocorrido após os atentados terroristas da ponte de Londres e do mercado de Borough, em inícios de Junho deste ano. Tinha problemas familiares, de abuso de álcool e estava desempregado. Aparentemente, tratou-se de um acto isolado, explicável pela personalidade violenta e problemas de sociabilidade de um indivíduo. Mas, tal como em França em 2015 e 2016, a situação social e política no Reino Unido em 2017 é politicamente tensa e impregnada de mal-estar. Esse ambiente pode ser um poderoso amplificador de comportamentos e problemas que, noutros contextos estariam contidos. Potencia o radicalismo e a violência social e política. Como se chegou a este ponto?

2. “Irá ocorrer um confronto entre a extrema-direita e os muçulmanos”. A previsão sombria foi efectuada pelo chefe da Direcção-Geral de Segurança Interna francesa, Patrick Calvar, há um ano atrás. O contexto foi o de uma audição parlamentar, em Maio de 2016, sobre o terrorismo. No verão de 2016 parecia, perigosamente, que a profecia se poderia mesmo realizar. Na noite de 14 de Julho de 2016 — o feriado nacional francês, onde se celebra a revolução de 1789 e a tomada da Bastilha —, um camião foi usado em Nice para matar, indiscriminadamente, população civil na rua. Esse atentado — que culminava uma sucessão de actos terroristas de islamistas-jihadistas de grande dimensão contra a população civil francesa —, gerou enorme apreensão. O receio maior era o de que a violência subisse para um novo patamar envolvendo confrontos entre a população nativa e muçulmanos franceses oriundos da emigração, seja por instigação da extrema-direita ou por acções espontâneas de retaliação popular. A questão que muitos colocavam era a de saber até quando a população visada continuaria a aguentar ataques terroristas, reagindo apenas com manifestações de luto e solidariedade com as vítimas.

3. Num outro plano, mas interligando-se com o receio de uma confrontação entre diferentes grupos, o caso do burkini marcou a França e a Europa no Verão passado. Esteve na origem inúmeras polémicas verbais e escritas, contra ou a favor. Mas na Córsega a polémica passou para a violência física. Surgiram confrontos entre a população nativa local e muçulmanos oriundos da emigração que habitam na ilha. A situação mais crítica ocorreu numa praia corsa, em Sisco, quando adolescentes tentaram fotografar mulheres que usavam burkini. Os homens muçulmanos no local quiseram impedi-los de o fazer, aparentemente de forma agressiva. O conflito acabou por alastrar tornando-se num confronto violento generalizado. Num outro contexto político, que não aquele da França e da Europa dos últimos anos, provavelmente seria mais um de um Verão sem notícias importantes. Mas há um ano atrás a referida sucessão de atentados terroristas perpetrados por islamistas-jihadistas atingia o seu pico em França. O clima social e político estava demasiado tenso para o episódio do burkini ser um mero fait-divers.

4. Várias grelhas de leitura podem ser usadas para tentar perceber o contexto destas tensões sociais e políticas. O que aqui me proponho fazer é vê-las à luz da transformação de uma Europa de Estados-nação numa Europa pós-nacional. Note-se que isto é válido para a Europa da União Europeia na sua parte ocidental. No Leste europeu e nos Balcãs a história é outra. Como é normal nos processos históricos de grande transformação — e para além das suas virtudes e benefícios —, trazem consigo a engrenagem de novos problemas sociais e políticos. O mais complexo é a crescente heterogeneidade de Estados e sociedades que, num passado recente, eram bastante homogéneos em termos de grupo nacional. A fase de transição que estamos a atravessar pôs em contacto directo populações com valores e visões do mundo muito diferentes. A maioria das massas está ainda impregnada de valores nacionais (onde a nação é a principal identidade social — foram sobretudo esses que votaram a favor do Brexit), mas sofrem um declínio numérico e demográfico; as populações oriundas das migrações extra-europeias estão imbuídas de valores pré-nacionais (onde a religião, especialmente o Islao, é a principal e mais profunda identidade social), estando em crescendo demográfico e sobre-representadas nos mais jovens e no sexo masculino; e há, também, cada vez mais, populações pós-nacionais nas classes mais favorecidas e elites (com uma identidade secular e desnacionalizada).

5. Pela má experiência com os nacionalismos no século XX, muitos imaginavam, de forma entusiástica, a entrada do Ocidente europeu numa era pós-nacional como uma espécie de chegada à paz perpétua de Kant. Precipitaram-se. É verdade que, no passado, os nacionalismos agressivos levaram a guerras devastadoras. Pessoas que se viam a si próprias como fazendo como parte de um mesmo grupo nacional, partilhando uma mesma identidade quase sacralizada, sentiam um dever de solidariedade e de fazer sacrifícios. Acabou por essa ser também a engrenagem da violência e da guerra entre grupos nacionais. As ideias políticas pós-nacionais alimentam-se da rejeição deste passado ainda bem vivo na memória colectiva dos europeus. A nação foi descredibilizada em termos intelectuais e políticos, especialmente a partir dos anos 1980. Não era uma comunidade com genuína existência real. Era uma mera construção social — uma “comunidade imaginada” na expressão clássica de Benedict Anderson. A sua dissolução em sociedades multiculturais, o mais possível diversas, tornou-se o novo ideal de perfeição e modelo de coexistência pacífica no Ocidente europeu. Foi subestimada a possibilidade dessas transformações poderem abrir caminho a novas e antigas formas conflito, que não são de origem nacional / nacionalista. Os nacionalismos estão de longe ser a única fonte dos males da humanidade. No mundo actual não são de certeza a pior. Basta olhar para os conflitos e guerras sectárias permanentes no interior do mundo muçulmano, de tipo pré-nacional, e para o islamismo-jihadista que aí nasceu, que nada tem a ver com nacionalismo. Pelo contrário, é combatido por ser uma ideologia secular ocidental.

6. A dissolução das grandes nações europeias como “comunidades imaginadas” está em curso. Não é um processo linear e contínuo, mas é a tendência que marca a transformação social e política da Europa no longo prazo. Paradoxalmente, no curto prazo, beneficia os nacionalismos de pequenas nações como a Catalunha ou a Escócia, os quais tentam afirmar-se e criar novos Estados soberanos. Mas esses são, de alguma forma, nacionalismos fora de época. O afrouxamento dos laços nacionais deixou fundamentalmente um espaço vazio. Poucos se sentem genuinamente unidos por um europeísmo ou cosmopolitismo. Menos ainda estariam dispostos a sacrificar a sua vida por tais ideais. No território das grandes nações europeias surgiram, nas últimas décadas, novos grupos culturais frequentemente acantonados em guetos, de dimensão e número desconhecido na era da nação homogénea. É algo demasiado evidente nas grandes metrópoles europeias e suas periferias: populações que se ignoram, ou conflituam culturalmente, pois não partilham os valores mais profundos que alicerçam a cidadania. No pior dos casos, convergindo circunstâncias políticas adversas internas e / ou internacionais — o que tem ocorrido frequentemente nos últimos anos —, surgem tensões sociais e políticas fortes.

7. Importa deixar claro: não há um determinismo causal negativo entre a diversidade cultural e o conflito e a violência. Mas também não há um determinismo causal positivo entre a diversidade cultural e o bem-estar social, económico e político. Ambos os resultados podem acontecer em determinadas circunstâncias. Que condições levam a que numa sociedade a diversidade cultural seja um factor de riqueza social e de bem-estar e noutra sociedade um factor de atrito, conflito e violência? Não há qualquer resposta fácil. Nem é possível generalizar com rigor, a partir de uma experiência concreta, dada a grande complexidade do assunto. Na Europa, o que é objectivamente observável é que a dissolução dos laços nacionais trouxe novas realidades sociais e políticas. Pela positiva, diminuiu drasticamente a possibilidade de violência e guerras entre grupos nacionais. Pela negativa, aumentou a possibilidade de conflitos entre grupos que não se sentem ligados entre si, apenas coexistem num mesmo território estadual. A dissolução da nação está a matar gradualmente os nacionalismos. Resta saber se não abriu nova caixa de pandora da qual o islamista-jihadista é um dos piores males e já anda à solta em solo europeu.

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