Em Sobrado, o São João é uma guerra santa

Todos os anos há uma guerra entre mouros e cristãos a 20 quilómetros do Porto. Diz-se que só quem ali nasce é que a pode compreender.

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Nelson Garrido
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Há muito tempo que Sobrado é palco de uma guerra que se repete a cada ano. São sete da manhã. Na Rua do Vale Direito, incrustada nas ruelas daquela freguesia do concelho de Valongo, os mouros, jovens solteiros, já esperam o seu rei. Emproados, silenciosos. As barretinas napoleónicas esquecidas nas mãos. Ainda não é a hora da batalha, mas já estão vestidos a rigor para ela. Antes disso, um banquete na casa do chefe da tribo.

O povo aguarda nas varandas. É dia de abrir as portas e portões das casas, ouvir o rufar do tambor e o início de uma batalha que faz adivinhar um longo dia. “É o maior dia do ano”, uma voz, no meio da multidão, proclama.

José Dias, 58 anos, é pai do rei. Um Reimoeiro, como assim se chama o dos mouros, de olhos claros e barba feita. Celso Dias, que fez esperar a sorte de se casar, para poder subir ao trono. “Quatro anos. Ela não gostou nada da ideia”, conta, rodeado dos seus soldados mourisqueiros. Depois da guerra, vem o casamento. José não contém a emoção. O filho, de 32 anos, decide ser um soldado mouro há 15 e hoje, como rei, faz alçar do seu pai uns braços tremidos quando a conversa é “orgulho”.

São como soldadinhos de chumbo saídos directamente dos filmes sobre invasões napoleónicas, mas a história é outra. Estes remontam à época da ocupação muçulmana da Península Ibérica. A firmeza destes mouros ocupa a serra de Cuca Macuca, sobranceira a Valongo, onde se dedicam à exploração de jazidas auríferas. Bem lá no alto, avista-se Sobrado. Aqui mora uma tribo cristã, os bugios, enviados para os vales da cidade pelos mouros, onde se dedicam a actividades agro-pecuárias. É terra de cristãos, devotos ao seu São João, do qual guardam uma imagem que garantem curar qualquer mal. Os bugios são os foliões da cidade.

“Andas desnorteada com os mourisqueiros à porta, mulher!”. De espadas em riste, o reflexo de um dia soalheiro no metal e um punho onde se atam lenços brancos de paz. Oito da manhã. É assim que se apresentam os mouros. Fazem a vénia ao rei e aguardam ordens para o início da marcha. Apesar das botas de cano alto a pisar decididamente o asfalto, ouve-se apenas o rufar monótono de um tambor ajustado ao ar firme e decidido dos mourisqueiros. Tudo parece presságio de tempos difíceis.

Afinam-se os trajes. Pousam cravos ao peito, pede-se paz. “Corta mais um bocado o caudal senão isso cai do bolso” — são conselhos das famílias. “Houve um a chegar ao dia e foi de t-shirt” — há quem leve a tradição com rigor. Aperta-se o único botão das luvas, enleadas nas palmas dos guerreiros. Os espelhos dos seus chapéus são a euforia do povo reflectida. Aperta-se, por último, a fita das barretinas, debaixo do queixo. Para bom mouro, um laço basta.

Os olhos no chão anunciam o respeito ao rei. Alguns não largam as armas e há agora um cravo perdido no chão. Uma criança apressa-se a apanhá-la. Sorri, como se tudo estivesse ganho. Mas a guerra, afinal, ainda nem começou.

Duas filas paralelas, de frente para o rei. Mão direita de espadachim ao alto, mão esquerda alinhada com o corpo. A marcha começa. Esquerda, direita. Um, dois. Um, dois, três. De novos a mais velhos, a maturidade parece servir aos mouros pela mesma medida. O rei, de costas para o povo e de frente para o seu exército, guia os passos. “Para trás. Chega-te para trás”. Ou se segue a direito ou não se segue. Entretanto, o lenço branco já altivo na arma, hasteado como bandeira.

“Eu sou mais para os bugios!”. “Mas estes têm mais postura”. Sentados em muros ou nas escadas das várias casas da rua, todos os que assistem à saída dos mouros para o centro de Sobrado têm uma opinião.

Os treinos começaram há um mês. Esquerda, direita. Joelhos ao alto. O suor já viaja pelos pontos secos do rosto. O tambor apressa-se e a marcha também. É hora de seguir.

Já o sol aquecia o ouro das fardas dos mouros, uma rústica folia vestida de fatos de algodão de todas as cores ergue-se do outro lado da freguesia. Se a primeira dança tem todo o ar de preparação de uma batalha, outras tantas ruas enchem-se de uma coreografia desajeitada, numa performance sinistra que nos conduz para um carnaval abraçado a um dia das bruxas. É terra de bugios — contam-se à volta de 500 —, os foliões de gestos selvagens e gritos desordenados. “Oh”. “Oh”. São os gritos de guerra sobre o típico saltitar em corrida desta tribo, irrequieta.

Também eles com direito à sua fatia de realeza. O Velho é o rei destes cristãos, de cuja casa todos partem esta manhã. Distingue-se pelo seu casaco tipo batina cintado e abotoado e pela sua barretina alta e emplumada. Veste um manto eclesiástico de um rico encarnado de pele de alperce debruado a ouro. Sobre os ombros, uma dobre. É Sérgio Nuno que explica que o seu papel é “o sonho de qualquer bugio”.

De repente, a comédia como palco de rua. “Quem era?”. São centenas e escondidos por trás das suas máscaras. Querem-se anónimos, para que a brincadeira nunca seja levada a mal. Umas partidas aqui, uns sustos ali. Mas sempre sem parar de saltar. Os bugios são a festa da casa e o povo abre as suas para os ver passar. “Já chegaram!”.

“Quem sabe contar bem esta história é a Marta”. Bugios e mourisqueiros nunca foram povos que se juntassem para um café ou uma conversa à volta da mesa. Entretanto, com apenas 16 anos, a filha do rei adoece. Desesperado, procura todos os especialistas e curandeiros a fim de encontrar uma cura. Sem sucesso, decide recorrer à tribo cristã, conhecida por ser devota ao seu santo, o São João, que diziam já ter curado muitos males. Numa última tentativa de salvar a sua filha, o Reimoeiro pede a imagem do São João emprestada aos bugios. Estes, de bom grado, emprestam e aguardam as melhoras.

Dez da manhã. A banda musical de São Martinho de Campo faz-se ecoar pela freguesia. A mesma música que há anos recebe cristãos e mouros. Trompetes, tambores, flautas, clarinetes. O povo já conhece todas as notas. O povo corre de rua em rua para poder presenciar a história que se constrói.

A filha do rei é curada. Em honra ao santo, este decide organizar um banquete, para o qual os vizinhos cristãos estão convidados. “O rei é ingrato. É assim que reza a história”. O jantar entre as tribos esteve aberto ao povo, que receberam com alegria a união entre estes. Afinal, não passava tudo de um pretexto para roubar o santo aos bugios. Chegados ao banquete, os cristãos são recebidos com os restos. Alguns ossos. O que parece impossível de curar é mesmo a ingratidão do rei. Os bugios retribuem a afronta.

Ainda assim, os mourisqueiros decidem continuar a festa. Erguem o santo numa procissão que atravessa parte da freguesia, como sinal de agradecimento. Convencidos que este lhes traria saúde e prosperidade eterna, aproveitam estar na sua posse para roubar a imagem de São João.

Oito da noite. A guerra trava-se no Largo do Passal, o coração da freguesia. Os castelos dos bugios e dos mourisqueiros erguem-se, frente a frente, neste mesmo largo, sobre palanques. É o bem contra o mal.

Entre os dois postos de defesa e ataque, um mensageiro, sobre um cavalo, que vai recolhendo e entregando as mensagens de negociação entre bugios e mourisqueiros. Entre esta viagem, de palanque a palanque, tiros. “Tapa os ouvidos! É agora!”. O cheiro a pólvora seca no ar. Um povo que salta de felicidade a cada resposta na ponta da arma. “Hei!”. José Dias aponta um olhar atento sobre a prestação do filho nesta batalha. Mãos no queixo, cabeça levantada.

Lá no alto, debaixo dos sobreiros do largo, os juízes. A justiça junta-se ao conflito nesta dura tarefa de reatar ligações entre as tribos. Ambas parecem não chegar a qualquer consenso. Mais uns joelhos no chão, mais um dedo no gatilho, mais um disparo. Mais uma nuvem de pólvora que navega sobre o povo cristão de que o seu santo voltará a casa. Pousam a cabeça entre as palmas das mãos. Cá em baixo, tantos outros bugios que não se juntam no palanque apressam-se a festejar com as castanholas no ar e os guizos da sua indumentária a brandir. Do outro lado, num outro palanque, os mourisqueiros. Serenos, firmes. Como no início.

Os juízes, de máscara ameaçadora e chapéu preto, dentro de um fato selecto, parecem já ter percebido que este é, de facto, um caso perdido. Batem com as bengalas nas arestas dos palanques. É um diálogo de surdos e mudos. Nem a força da lei nem as armas põem fim a este conflito.

“Já não vou a um São João no Porto há muitos anos. Vim cá uma vez e agora venho sempre”. Nestes cruzamentos de conversas, correu o tempo suficiente para que a pólvora deixasse de chegar do lado dos bugios. O Velho deita as mãos à cabeça. Parece estar tudo perdido e os mourisqueiros já deram conta da indefesa dos rivais. Sobre as ordens do Reimoeiro, todos descem do seu castelo para invadirem o dos cristãos.

“Esta é a parte mais bonita!”. É o regresso do tambor mouro. Os senhores de fardas napoleónicas cavalgam até ao palanque, de queixo levantado. Cada batida era um ponto a mais na história e um drama que nascia e florescia nas expressões do povo. Os mourisqueiros sentem-se vitoriosos e querem gabar esta glória em praça pública. Apesar dos esforços dos bugios, o Reimoeiro prende o Velho. Agarrando-o, por trás, pelo colarinho, todos os cristãos choram a sua captura. No fundo, o hino “Paixão” — sensação que, por aqui, muito se diz não ser compreendida por quem cá não teve a sorte de nascer.

Sorte é mesmo o que este Velho, há tantos anos bugio, parece precisar. Do cimo das escadas, surge uma criança. “A isto chama-se limpar as lágrimas ao Velho”, explica-se na multidão. Fardada, escondida por detrás da sua máscara de pequeno porte, pede compaixão ao Reimoeiro, para que liberte o seu chefe. Do Velho, correm lágrimas que a criança, perto dos seus quatro anos, se apressa a secar, deixando-se cair sobre o corpo ajoelhado do rei dos bugios para um abraço. É a despedida.

Entretanto, o povo oferece as suas varandas para que todos possam ter uma vista privilegiada sobre aquela que parece ser a derrota dos cristãos. Sobre estas paisagens se concebem amizades, em varandins por onde todos entraram apenas como desconhecidos. Os olhares sempre atentos vagueiam por uma rua preenchida por bugios e mourisqueiros, que, de tantos serem, deixam na dúvida onde começa e termina a rua.

De repente, um milagre marca o anoitecer. São nove da noite. Nestes homens, mulheres e crianças de pés irrequietos, há braços que nunca se cruzam. Subindo o largo em direcção aos mourisqueiros, um conjunto de bugios corre, sem fim à vista, com uma serpe carregada nos braços, que afasta imediatamente os mouros. Assustados, os mourisqueiros abrem alas à vitória de todos os bugios que hoje escrevem a lenda de São João de Sobrado.

Desde 2013, esta celebração integra a lista de candidaturas a Património Cultural e Imaterial da UNESCO. Contada todos os anos, no dia 24 de Junho, a Bugiada é uma lenda que faz parte da vida de um sobradense. Já não se escolhe, como diz Celso Dias. “Quem vem de fora fica com a vontade de voltar e até fazer parte. Quem é de cá, já não questiona, porque já nasce com isto”. Ata-se o coração à história e prolonga-se uma memória no tempo, que viaja dos avós aos netos.

A Cuca Macuca é hoje a actual serra de Santa Justa. E apesar de os fatos selvagens e exóticos destes bugios já não vaguearem pelas ruas da cidade, pisar Sobrado ainda é sinónimo de folia em terra de São João.

Faltam os documentos que nos contem a história tal como ela poderá ter acontecido, mas reza também a lenda que uma lenda nunca se questiona. A história fica, por isso, documentada num processo de boca em boca, geração em geração. Este povo nunca precisou de oficializar a sua paixão. Com farda ou sem ela, “a Bugiada é de todos”. “Somos todos figuras desta história”, conclui José Alexandre, 36 anos, bugio desde os nove.

José Dias lá ficou. Como personagem desta lenda já não verá o seu filho desfilar, mas, como diz, “isto é para sempre”.

Texto editado por Pedro Guerreiro

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