O inúmero povo dos mortos de Alberto Giacometti

Mais do que um dos grandes artistas do século XX, foi — é — uma das presenças mais importantes em toda a história da escultura ocidental. A enorme retrospectiva que a Tate Modern lhe dedica até 10 de Setembro evidencia aquilo que nunca deixou de procurar: a verdade do rosto e do movimento.

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Alberto Giacometti (1901-1966) é um dos grandes artistas do século XX. Esta afirmação, ainda que consensual, carece de um esclarecimento e de uma correcção. É que, por um lado, a sua grandeza não vem da maneira como circulou em feiras ou bienais, nem dos valores extraordinários que as suas obras atingiram nas famosas casas leiloeiras; e, por outro, se o século XX é o da sua biografia, e o dos rostos que trouxe ao mundo, o seu verdadeiro tempo é o tempo do mundo e de toda a arte. Ou seja, Giacometti é uma das presenças mais importantes em toda a história da escultura ocidental – e isso é uma das primeiras coisas que se percebem na enorme retrospectiva que Tate Modern, em Londres, dedica ao escultor suíço até 10 de Setembro.

Giacometti é uma das maiores retrospectivas de sempre dedicadas ao artista. Cruzando períodos muito diferentes, é uma exposição que torna explícito o facto de estarmos perante uma obra em permanente processo de experimentação e de descoberta. Ao longo das mais de 250 obras que aqui se reúnem, realizadas entre 1917 e 1965, é notória não só a inquietação — a que o próprio chama febre — presente a cada momento, mas também o modo como Giacometti foi procurando através de novas formas, de novos modelos e de novos materiais, a verdade do rosto, do movimento e da escultura. Como escreveu numa das suas notas: "Interesso-me muito pela arte, mas instintivamente interessa-me mais a verdade […]. Quanto mais trabalho, tanto mais a minha visão se torna diferente.”

Foi justamente esse desejo de encontrar novas formas de ver que levou Giacometti a procurar em diferentes movimentos artísticos seus contemporâneos princípios a partir dos quais desenvolver o seu trabalho. Mas, e apesar da sua proximidade a certos artistas e a certas escolas, cada uma das suas obras é singular na maneira como afirma a sua especificidade e constitui um território de diferença. Estas características fizeram com que, em 1936, quando confrontado com a necessidade de ter de escolher entre incluir as obras de Giacometti numa exposição dedicada ao cubismo e ao abstraccionismo ou noutra exposição simultânea sobre o movimento Dada e surrealista, Alfred Barr, então director do MoMA, em Nova Iorque, tivesse optado por dividi-las pelas duas exposições. Não é de facto possível, com total certeza, localizar o trabalho do artista num ou noutro campo.

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Alberto Giacometti em 1965, pouco antes da sua morte PIERRE MATISSE/SUCCESSION ALBERTO GIACOMETTI

Aquela indecisão revela o modo como as suas esculturas, os seus desenhos e as suas pinturas constroem um lugar que, apesar de estabelecer diálogos com o seu tempo e as questões formais, conceptuais e políticas centrais que o caracterizaram, constitui, sobretudo, um caminho único por entre as diferentes expressões do modernismo europeu. Caminho este que culminará num forte interesse pelas questões do existencialismo tão intensas no pós-guerra. E será esse clima de desespero existencialista, de que a proximidade com Sarte e Simone de Beauvoir é um sintoma, que mais fortemente dará às suas obras o carácter de uma antropologia artística.

A vitória do bronze

É uma afirmação, esta de que a obra de Alberto Giacometti constitui uma espécie de antropologia artística, a fazer com algumas precauções, e forçando os limites disciplinares. Mas é uma afirmação que se funda no facto de o verdadeiro desígnio de Giacometti — testemunhado em cada uma das suas obras e nas suas palavras escritas e ditas — nunca ter sido a construção e a articulação de um sistema artístico, antes o de ver realisticamente um rosto, através do domínio da matéria e do gesto. Trata-se, como esta retrospectiva reitera, de um artista guiado pela ambição de fazer passar para o objecto escultórico a capacidade de ver um rosto humano a partir de dentro. Na primeira sala da exposição, é essa ambição que fica testemunhada: um conjunto de cerca de 50 esculturas de cabeças que acompanham todo o período em que Giacometti esteve artisticamente activo mostra como, insatisfeito com a pedra, o gesso, o bronze, o artista foi alterando o seu modo de fazer e pensar à procura de uma maneira mais exacta de fixar numa escultura o objecto da sua visão.

Jean Genet, poeta francês e amigo muito próximo do escultor, diz que em Giacometti é o bronze que ganha: trata-se, escreve ele no seu O estúdio de Alberto Giacometti, de uma vitória do bronze sobre o bronze. E é um triunfo do bronze e sobre o bronze porque às mãos do escultor aquele material ganha uma vida desconhecida até àquele momento: nunca o bronze teve tanto movimento e tanto corpo como nas esculturas de Giacometti. E as obras reunidas pela Tate mostram como o artista foi conquistando o bronze e conseguindo imprimir-lhe uma intenção e uma relação entre peso e leveza que tão bem caracterizam a presença humana sobre a Terra.

Se o bronze é uma das matérias de eleição do artista, o corpo, o rosto e o movimento humano são, em rigor, os seus únicos temas. Trata-se de uma atenção ­ — que se constitui como inquietação filosófica e artística — à singularidade de cada ser. Investigando como cada rosto é igual a todos os outros e, simultaneamente, se distingue de todos os outros.

De resto, é muito interessante ver os seus retratos (pintados e esculpidos) em conjunto: surgem diferentes modelos que o artista tentou retratar, diferentes matérias, mas ao mesmo tempo parece que é sempre um e o mesmo rosto, não porque o artista reduza as diferenças existentes entre cada um, mas porque há um comum a unir todos os diferentes seres que Giacometti enfrenta. Os seus modelos podem ser uma prostituta, a sua mulher Anette, o irmão Diego, o poeta Genet, ou outros quaisquer, mas à sua mão todos eles são e não são o mesmo rosto: dizem-se a si mesmos, na sua irredutível diferença, mas ao mesmo tempo constituem uma comunidade.

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Diego Sentado (1948), um dos retratos que o artista fez do seu irmão SUCCESSION ALBERTO GIACOMETTI

Todos os rostos

Numa das suas conversas com Genet, Giacometti afirmou: "Quando vou pela rua fora e distingo ao longe uma pêga vestida, só vejo nela uma pêga. Assim que entramos no quarto e ela se põe nua à minha frente, vejo uma deusa." Estas palavras revelam que Giacometti não procurava em cada modelo a sua especificidade histórica. Interessava-lhe, pelo contrário, sublinhar que quando desse rosto se vê o essencial não só essa figura se diz a si mesma na sua irredutível singularidade como se transforma numa figura universal, na qual todos nos reconhecemos.

Num certo sentido, a esta operação escultórica corresponde um certo procedimento negativo: anulando tudo o resto, o artista procura encontrar aquele elemento mínimo que permite, no limite, reconhecer um rosto humano. Um mínimo de matéria para uma expressão intensa de vida. Abolir ao máximo a matéria, tentando chegar àquele ponto de equilíbrio entre a possibilidade de reconhecimento de um corpo e a sua dissolução no sem figura, no sem nome, no sem corpo. Trata-se de uma conquista à matéria e à forma que se traduz no reconhecimento da fragilidade do corpo e da vida e que esteve na origem de esculturas que oscilam entre uma grande escala — mulheres e homens com mais de três metros de altura —  e a dimensão milimétrica e quase invisível de figuras aparentemente captadas no último momento antes do seu desvanescimento.

Ao contrário de um pensamento movido pela ambição de encontrar a essência, estamos perante o reconhecimento da nossa fragilidade constitutiva e da solidão que caracteriza cada ser. E que, aqui, não são categorias existenciais, mas princípios artísticos. Em termos escultóricos, esta ideia de solidão implica subtrair cada rosto ao mundo, ao tempo e à história: era esse o acontecimento que se dava quando Giacometti, no seu atelier ou no quarto de uma pensão, observava longamente os seus modelos. Ao libertá-los dessas dimensões de contingência, impedia a sua diluição num conjunto de atributos que lhes fossem estranhos. Por isso, a relação de Giacometti com os seus modelos era uma relação de conhecimento; a sua ambição foi traduzir esse conhecimento no traço da pintura ou no bronze da escultura.

Embora o conjunto de obras reunidas na Tate mostre o predomínio do rosto como tema recorrente, também mostra que essa presença arquetípica não corresponde a uma escolha, é uma febre artística. Escreveu Giacometti: "Não me importo se nas minhas exposições surgem sucessos ou fracassos… Não tenho quaisquer exigências, meramente quero fazer febrilmente." Giacometti é sobre esta febre.

E se isolar cada rosto e cada corpo é uma consequência desta vontade de conhecer cada individuo, cada figura, cada forma, o movimento é outra das características mais marcantes da sua obra. Poderiam dar-se muitos exemplos, mas a sua Figura a andar (Figure em marche, 1947) constitui um dos maiores: imbuída dos poderes do instantâneo fotográfico, esta escultura de um homem a andar consegue captar esse movimento imediato. Ao aspecto estático dos seus rostos esculpidos em pedra ou fundidos em bronze, Giacometti acrescenta o movimento que contraria a inultrapassável rigidez dos objectos escultóricos.

Esculpir para os mortos

"Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem. Ou rejeitam. Mas os mortos de que falo nem vivos foram. Ou então esqueci-os […]. Embora presentes, onde pertencem essas figuras de Giacometti que eu cito, senão à morte?"

Esta descrição das obras de Giacometti feita por Genet, depois de ter passado muitas horas no estúdio do artista a vê-lo trabalhar, é das melhores apresentações do seu trabalho. O carácter enigmático da passagem emerge da observação justa e rigorosa de um corpo de trabalho que nos surge como um elaborado processo de retirada das figuras e das coisas do mundo que partilhamos e habitamos, promovendo a sua passagem para o mundo das sombras.

Que as suas esculturas não encontrem nos vivos do seu tempo os seus destinatários, mas que, pelo contrário, se constituam como oferenda ao inúmero povo dos mortos põe Giacometti sob o signo da inactualidade. Esse foi, aliás, um estado permanente do artista, expresso tanto nas suas preferências pelo ideal comunista de sociedade tão a contrapêlo do espírito do seu tempo, quer no modo como repudiou todas as convenções artísticas correntes; mas trata-se também de uma inactualidade metafísica, porque os corpos das suas esculturas parecem desejar a dissolução de si mesmos. Pode pensar-se numa espécie de transcendência conquistada através da mão do artista: são impressionantes as imagens mostradas nesta exposição do modo como as mãos de Giacometti, quando tomadas pela intenção de dar forma ao gesso dos moldes dos seus bronzes, se transformam em veículo primordial de ligação à Terra e, ao mesmo tempo, constituem uma forma de a transcender.

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