Mélenchon e Le Pen desafiam Macron

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1. A segunda volta das legislativas francesas encerrou um ciclo e deu o tiro de partida para a abertura do novo confronto entre Emmanuel Macron e os dois populismos que dominam a paisagem política francesa: A França Insubmissa (LFI), de Jean-Luc Mélenchon, e a Frente Nacional (FN), de Marine Le Pen. Nas presidenciais, Marine le Pen foi o adversário principal de Macron, o que valeu ao novo Presidente uma homenagem internacional por “salvar a Europa dos populismos nacionalistas”. A vitória foi assinalável, mas não eliminou o problema. 

Os dois opostos populismos, de esquerda e de direita, não farão apenas uma oposição institucional. Tentarão mobilizar na rua forças sociais contra os projectos de reforma de Macron. E, de momento, não será Le Pen mas Mélenchon quem estará na primeira linha. Depois do duplo fracasso eleitoral, a FN está dividida e terá de redefinir a sua estratégia. Logo que se recomponha, voltará à cena. Neste texto ocupo-me da oposição de Mélenchon.

Há uma realidade nova. A “recomposição política” imposta pela vitória de Macron criou uma situação inédita. Os partidos clássicos da esquerda e da direita estão na margem. O movimento de Macron, A República em Marcha (LRM), dispõe da maioria absoluta na Assembleia Nacional. O PS naufragou. Os Republicanos (LR, direita) estão num processo de ruptura interna ou até em decomposição. Depois de terem fingido ignorar as suas crises, os partidos são agora forçados a um processo de reconstrução. Que será demorado. O peso do LR é baixo e o do PS quase nulo. Que quer isto dizer? Que está aberto o caminho para que os extremos do sistema ocupem os principais espaços de oposição. 

Que significa isto para Macron? À primeira vista ser-lhe-ia favorável ter como principais adversários os extremos. Não é assim tão simples. Anota o veterano jornalista Philippe Tesson: “[A queda dos partidos] faz do Presidente da República o senhor do jogo político. Mas faz dele, ao mesmo tempo, o alvo de vingança da soma das oposições. A sua legitimidade é total. Mas a adesão popular é ainda frágil.”

2. Aproveitando a ocasião única da decomposição do sistema partidário e do naufrágio socialista, Mélenchon tem como objectivo ocupar os espaços do Partido Comunista (PCF), do PS e dos Verdes para aparecer como “o verdadeiro patrão da esquerda” (Bruno Cautrès) e assumir a liderança da oposição a Macron. A sua linha de ataque consiste simultaneamente numa “diabolização” do projecto político de Macron e na recusa da sua legitimidade para fazer reformas. E, ao mesmo tempo, deslegitimar o Parlamento e todos os eleitos. “Recuso-me a aclamar o novo príncipe”, diz Mélenchon. 

Faz constantes shows apreciados pela televisão como a entrada na Assembleia e o seu escândalo ao ver a bandeira europeia ao lado da francesa. “Francamente, somos obrigados a suportar isto?”

Uma das vedetas da LFI, o realizador François Ruffin, destaca-se neste trabalho da deslegitimação. “Tous pourris” (“Todos corruptos”). Escreveu numa “Carta aberta” a Macron: “O senhor é odiado, odiado, odiado. (...) É odiado pelos que vêem em si, com razão, a elite arrogante. (...) A oligarquia apoia-o e as classes superiores seguem, perfeito. Mas, em baixo, nas classes populares, é a carnificina” (Le Monde, 4 de Maio). 

Alain Bergounioux, historiador do socialismo, diz que “é altura de levar a sério [Mélenchon], o que ele propõe e representa”. A crise actual, na França como em Espanha, fez renascer uma “esquerda neocomunista”. Mélenchon evoca a herança de Mitterrand, mas “nunca fez sua a cultura da social-democracia europeia” e é irredutivelmente antieuropeu. Não crê na democracia parlamentar. Assume-se como populista, de inspiração “chavista”. 

3. “Na França de hoje, a LFI é hoje a única força capaz de federar os descontentes do velho mundo, os soberanistas e os populistas, os imobilistas e os anticapitalistas”, escreve o jornalista Bruno Roger-Petit. 

“O nosso privilégio, se assim se pode dizer, é que também temos uma forte corrente de extrema-direita”, ironiza Bergounioux. O sociólogo Michel Wieviorka está de acordo: “Dois populismos valem mais do que um.” Porque nenhum deles será hegemónico. 
A França Insubmissa e a Frente Nacional têm muitas convergências. São ambas soberanistas e nacionalistas, defendem a saída do euro e, implicitamente, da UE, têm um programa proteccionista, denunciam as elites. Mas têm um terreno de oposição radical: a FN tem um discurso xenófobo, por vezes racista, enquanto Mélenchon é partidário de uma imigração completamente aberta e partilha os combates anti-racistas. São, de resto, herdeiros de tradições ideológicas antagónicas: Le Pen descende da velha extrema-direita fascizante, enquanto Mélenchon representa uma tradição comunista e libertária. Por estas duas razões jamais serão aliados.

Mas a sua convergência no combate ao “sistema”— ou a Macron — não precisa de um acordo político e muito menos de uma aproximação ideológica. Basta que as “opostas contestações” coincidam no combate às reformas ou na oposição à Europa. “A esquerda radical quer desmantelar a Europa de Bruxelas para impor a soberania dos cidadãos”, enquanto “a direita radical sonha com uma Europa das nações, com menos imigrantes e mais soberania dos Estados”, escreveu há tempos o sociólogo italiano Luca Ricolfi. 

4. Macron sabe que Le Pen e Mélenchon somaram na primeira volta das presidenciais quase 40% dos votos. Não subestima o seu peso. Como bom analista perceberá que a sua maioria parlamentar lhe permite aprovar as leis e reformas mas que a sua base social está por consolidar. 

A oposição extraparlamentar será radical. E o Parlamento não será o principal campo de jogo. Macron só tem uma saída, escreve Wieviorka: “O interlocutor do Presidente será, em última instância, a sociedade civil, com as suas associações, os seus intelectuais e os seus sindicatos.”

A segunda linha de resposta está na entrevista de Macron publicada na quinta-feira em oito diários europeus. E a resposta é “uma Europa que protege”. Que vemos hoje? “O surto de democracias iliberais e de extremismos na Europa, o ressurgimento de regimes autoritários que questionam a vitalidade democrática e uns EUA que se retiram parcialmente do mundo.” Para lá de uma verdadeira política de defesa e segurança comum, “o objectivo de uma Europa que protege também deve prevalecer no âmbito económico e social”.

Enfim: “A crise do imaginário ocidental é um desafio imenso.”

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