O rosto da imortalidade

Marcelo Rebelo de Sousa é um actor político a representar um papel e quis que o seu retrato oficial fosse quase uma continuação das selfies por outros meios

Uma iconologia do rosto que não se reduza a uma interpretação fisiognomónica traz à luz a evidência de que os retratos oficiais das personalidades públicas – e, muito especialmente, os dos Presidentes da República, por estarem no lugar cimeiro do poder e da simbologia do Estado – são máscaras que assimilamos à pessoa. O príncipe de Maquiavel descreveu a máscara que o monarca deve pôr perante a sua corte. Em última instância, para produzir um efeito de verdade, o rosto e a mímica devem dissimular a sua própria simulação. O rosto teatral que se exibe no espaço público, com a sua retórica, foi facilmente desmascarado desde que a fotografia ganhou o estatuto de medium em estado de proliferação e passou a produzir rostos incessantemente, democratizando-os. Cavaco Silva ostentava uma máscara tão rígida, tão difícil de dissimular, que se tornou uma presa fácil, às vezes anedótica, da fotografia. O seu retrato oficial, da autoria de Carlos Barahona Possollo, é uma máscara neo-clássica, feita para exibir um controlo de si, oposto a toda a expressão enquanto exteriorização voluntária das emoções. Não há nada nele que não tenha uma função de representação: é um retrato alegórico e kitsch do poder presidencial, e a profusão de elementos simbólicos, manifestamente anacrónicos, confere-lhe uma dimensão narrativa.

Marcelo Rebelo de Sousa está nos antípodas. É o presidente que presta homenagem todos os dias à sociedade facial em que vivemos. A fotografia já não consegue desvelá-lo porque foi incorporada na sua máscara. Ele é o presidente mais fotografado e mais mediático, aquele que mais consegue esconder um rosto natural, tendo elevado a arte da dissimulação a tal grau que é difícil discernir as contradições e separações entre o rosto natural da esfera privada e o rosto teatral que se exibe no espaço público. Ele percebeu muito bem que o retrato é o rosto como artefacto e que as convenções fisionómicas residem nos artefactos. O retrato que escolheu há poucos dias para vir a ser o seu retrato oficial é um corte radical com os preceitos institucionais e as convenções. Não é que os submeta à ironia ou ao rebaixamento, mas situa-se no exterior deles. Antes de mais, porque é um retrato refractário às negociações da encomenda; em segundo lugar porque não é um retrato com assinatura de prestígio; em terceiro lugar porque é um retrato que tende para o baixo e não para o alto, para a profanação do poder e não para a sua celebração. Marcelo Rebelo de Sousa está sentado no degrau de uma escada, num assento impróprio e numa pose informal. Não passou pela condição de modelo, não posou no atelier do artista. E sorri: ele é aquele que quer mostrar que tem o poder de rir de si e do seu próprio poder. O que, paradoxalmente, é uma assunção do máximo poder.

Os retratos oficiais de Mário Soares, por Júlio Pomar, e de Jorge Sampaio, por Paula Rego, também podem ser colocados nesta galeria dos rostos presidenciais completamente profanos a quem foi extirpada toda a gravidade. Júlio Pomar fez da mímica e da gestualidade retórica intensificada a máscara de Mário Soares. O olhar do pintor é aqui um olhar pictórico e não um olhar fisiognómico, muito embora seja notório que se trata de um retrato marcado pela empatia do artista em relação ao seu modelo. Já o retrato de Jorge Sampaio joga com as convenções do género para as submeter à irrisão: o ex-Presidente e a República (um dos elementos do retrato é a figura feminina da República) parecem bonecos. Todos os signos convencionais do retrato solene e com uma função de representação estão lá, mas em vez de serem exaltados são completamente esvaziados do seu conteúdo.

Dir-se-ia que o retrato escolhido pelo actual Presidente, ad hoc, se subtrai ao processo de mobilização dos artistas a quem se faz a encomenda para investirem alguma energia na relegitimação e reactualização da arte do retrato. Júlio Pomar e Paula Rego mostraram uma grande consciência desta tarefa. O pintor do retrato de Marcelo Rebelo de Sousa, António Bessa, não precisou de se confrontar com ela. Foi o próprio Presidente que resolveu o assunto. Não é certo que ele tenha um grande saber teórico sobre a gramática histórica da fisionomia ou sobre iconologia política, mas tem um saber empírico e uma inteligência do papel que desempenha, da teatralidade que tal implica. E isso deu-lhe uma compreensão de que todo o retrato é performativo, tanto o retrato feito por um pintor que não possui nenhum capital simbólico outorgado pelo meio artístico, como os retratos feitos pelos anónimos nas selfies a que o Presidente se submete sem reservas nem resistências. Como todo o retrato fisiognomónico, este também é lacónico. Não quer narrar nada, mas trazer à luz, com precaução e “medida” (evitando todo o extremo que leva à caricatura, não acentuando as componentes figurativas mímicas), a imagem pública do carácter do retratado. Escolhendo um retrato exterior a uma encomenda, Marcelo Rebelo de Sousa preserva intacto o rosto teatral, a máscara. Ele diz “este sou eu”, em vez de ser outrem a dizer-lhe “este és tu”. Não interessa o teor de verdade que tem a sua máscara, o rosto teatral até pode coincidir em alto grau com o rosto “natural”, o da esfera privada. Mas o que devemos verificar é que o actual Presidente tem uma total soberania sobre a sua máscara e consegue preservá-la exactamente através dos meios que deveriam servir para desvelar: através da sobre-exposição no palco e do enfrentamento dos aparelhos ópticos.   

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