A comunicação do risco em Portugal (2): os cidadãos e as cidadãs que não interessam

Em Portugal a onda de calor teve pouco impacto nos alinhamentos e dispositivos sociotécnicos e, politicamente, não passou de um epifenómeno sem consequências significativas.

Concluo nesta crónica o tema da comunicação do risco na saúde em Portugal, abordando de forma mais específica o surto de hepatite A de 2017 e a recorrente sobremortalidade relacionada com as ondas de calor.

Em 8 de junho de 2017 estavam confirmados 280 casos de hepatite A em Portugal. E, mais uma vez, estamos perante uma comunicação de crise e não de comunicação do risco. Como documentou muito bem Alexandra Campos nas excelentes e contundentes reportagens realizadas para o Público, só o número de casos “excedentes” comunicados obrigou a Direção-Geral da Saúde a elaborar uma primeira nota informativa ou documento de trabalho e, após várias críticas, a corrigir a mesma e a enviar orientações mais precisas para os profissionais de saúde.

Como se compreende que uma autoridade de saúde nacional, a Direção-Geral da Saúde, identifique erradamente como causa predominante do surto da hepatite A em Portugal o chemsex (prática de sexo com recurso a drogas e outras substâncias similares), para depois, após consulta com grupos de ativistas especialistas na área, coligir informação para elaborar uma norma orientadora datada de 9 abril de 2017?

E, como acentua Bruno Maia, médico e ativista do GAT - Grupo de ativistas em tratamentos, num texto de opinião publicado no Público online a 3 de abril de 2017, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) já tinha alertado as autoridades europeias para o surto de hepatite A em agosto de 2016. Quando não há informação pertinente e cientificamente validada recorre-se ao princípio de precaução, mas sem deixar de desenhar uma estratégia de comunicação, pautada pela transparência e pela informação rigorosa. Havendo informação, e veiculada por uma entidade respeitável como o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, nada justifica a inexistência de um plano e de estratégias eficazes de comunicação do risco. Mas, como também o refere no seu texto Bruno Maia, na informação enviada e nas notas oficiais manteve-se o erro da estigmatização e da produção de alteridades perigosas, agora centradas nos “homens que praticam sexo anal ou oro-anal com outros homens e que se deslocam ou vivem em locais afetados pelo atual surto”.

Em todo este processo salienta-se um aspeto positivo, potenciador de lições futuras para casos análogos. Esse aspeto positivo prende-se com a existência de ativistas conhecedores dos temas em causa, com estudos rigorosos e conhecimento do terreno, que, numa lógica de cidadania plena, mobilizam conhecimentos e redes de contactos na defesa das pessoas direta e indiretamente afetadas. É de salientar, também, a abertura da Direção-Geral da Saúde e dos seus dirigentes em integrar essas associações ativistas e os seus representantes na avaliação dos casos de hepatite A, permitindo corrigir as perceções e as orientações iniciais.

Cabe então perguntar: e quando não há ativistas ou associações ou movimento sociais que defendam os direitos dos afetados? Por exemplo, quem defende e fala em nome dos milhares de idosos e idosas que morrem em Portugal sempre que há ondas de calor? Após a crise europeia de 2003, em que morreram cerca de 70.000 pessoas devido à onda de calor, a Organização Mundial de Saúde recomendou a elaboração e a ativação de planos de contingência. Embora estes existam, a sua eficácia depende muito da configuração institucional e do tipo de Estado existente em cada país europeu. Nos estudos comparativos por mim coordenados sobre as respostas às ondas de calor em França e Portugal concluiu-se que, enquanto em França a sobremortalidade de 2003 foi percecionada e definida como uma catástrofe, em Portugal, pelo contrário, a onda de calor teve pouco impacto nos alinhamentos e dispositivos sociotécnicos e, politicamente, não passou de um epifenómeno sem consequências significativas.

Mais importante, as medidas adotadas em França levaram a um ganho médio na esperança de vida nas mulheres de seis meses. E qual a medida mais importante adotada em França? A responsabilização e criminalização dos prefeitos e autarcas municipais por todas as mortes advindas de ondas de calor. Esta medida radical, que poderia ser interpretada numa lógica de direito emancipatório, consignou direitos aos idosos e idosas franceses, institucionalizando as práticas de cuidado e atenção aquando de eventos extremos.

Em Portugal, à parte a queixa-crime apresentada na Procuradoria-Geral da República por um grupo de médicos sobre a forma de atuação da Direção-Geral de Saúde na onda de calor de 2013, onde morreram 1.684 pessoas acima do estatisticamente expetável, não há registo de qualquer ação de associações ou de ativistas sobre esta temática. Nem uma única família colocou qualquer ação judicial sobre a morte dos seus familiares, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, na onda de calor de Chicago em 1995.

As pessoas afetadas, os idosos e as idosas, eufemisticamente reunidas em classificações estatísticas como sobremortalidade, ou em noções epidemiológicas higienizadas como o “efeito colheita”, são na verdade vítimas de uma cidadania invisível, portadores de uma cidadania que a ninguém interessa, independentemente dos avisos meteorológicos ou de saúde pública, ou dos censos anuais realizados pela forças de segurança.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais

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