A revolução de Outubro não deve “ser colocada num museu”

Albano Nunes defende a actualidade da mensagem da revolução russa de 1917. E garante que o acordo entre o PCP e PS “ainda responde a interesses fundamentais que tinham sido calcados aos pés”.

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Albano Nunes MIGUEL MANSO

O PCP organiza este sábado o seminário “Socialismo, exigência da actualidade e do futuro, na Faculdade de Letras de Lisboa, que se insere nas comemorações do centenário da revolução russa de Outubro de 1917. Para Albano Nunes, hoje retirado da direcção do PCP, mas um dos seus principais ideólogos – entrevistado pelo PÚBLICO a propósito do seminário —, diz que “a revolução de Outubro representa a primeira ruptura, o primeiro Governo dos trabalhadores e para os trabalhadores”, cuja “mensagem mantém toda a actualidade” apesar “dos avanços e dos recuos”. E assume que o PCP “tem de incorporar a reflexão acerca das novas tecnologias” como a Internet e as redes sociais.

Qual é hoje a actualidade da a mensagem da revolução russa?
Temos uma posição de fundo que é a perspectiva do socialismo e do comunismo e, de facto, a revolução de Outubro tem um significado histórico que não é conjuntural. Ela abre uma nova época da história da humanidade.

De ruptura.
Exactamente. A revolução de Outubro representa a primeira ruptura, o primeiro Governo dos trabalhadores e para os trabalhadores. A primeira tentativa e realização na prática, com atrasos, com defeitos, de uma sociedade sem exploradores nem explorados, de organizar a vida de um modo novo no interesse das maiorias, de alternativa ao capitalismo e ao imperialismo. Para nós, esta mensagem mantém toda a actualidade, independentemente das vicissitudes da história, dos avanços e dos recuos. Para nós, a revolução de Outubro não é qualquer coisa que deva ser colocada num museu, altamente respeitável e valioso, extraordinário para o seu tempo. Não. Os seus valores, os seus ideais, as suas experiências projectam-se para a actualidade de uma maneira sem dúvida modificada.

Fez referência a recuos na construção do Estado socialista na União Soviética. O PCP criticou os desvios, mas esse modelo continua a ser uma referência?
Há aspectos globais que sim. Na medida em que o Estado seja dirigido pelos trabalhadores e para os trabalhadores, em que os principais meios de produção, as alavancas fundamentais do desenvolvimento económico estejam nas mãos do povo, do Estado, estejam socializados. Em que o Partido Comunista tem de ter um papel dirigente, naturalmente ao lado de outras forças políticas, como o nosso programa estabelece, nós não defendemos o regime de partido único. Mas — e é isto que queria sublinhar —, para nós e para o camarada Álvaro [Cunhal], esta foi a questão das questões nas derrotas do socialismo, nomeadamente na União Soviética: o apoio das massas, a participação activa e criativa das massas populares, que se desenvolveu de uma maneira absolutamente extraordinária e indesmentível no processo da revolução de Outubro e nos primeiros tempos da construção do socialismo e na vitória sobre o nazi-fascismo...

A II Guerra Mundial.
Mas foi enfraquecendo, empobrecendo, terminando por se criarem situações particularmente negativas ao nível da política do Estado. É isso que ajuda a explicar porque foi possível o desenvolvimento do processo contra-revolucionário. Para nós, sem dúvida, a revolução de Outubro é uma referência histórica e vemos como muito actuais os seus ensinamentos em geral e, sobretudo, o seu significado de ruptura com o capitalismo. A vida está a mostrar que o capitalismo vive uma crise profunda, é incapaz de dar resposta aos problemas dos trabalhadores e da humanidade. É cada dia mais explorador, mais agressivo, mais predador, mais opressor. E isso cria, só por si, a necessidade da transformação da sociedade. Do nosso ponto de vista, esta é a questão central.

No seminário, vai haver alguma reflexão sobre outros países que hoje têm regimes que se autointitulam de tipo socialista, e que o PCP nos seus documentos refere como experiências interessantes a seguir. Por exemplo, aquilo em que se transformou o maoísmo?
Não digo que não apareçam referências, do ponto de vista do desenvolvimento histórico do movimento comunista, das diferentes correntes, dos diferentes desvios à direita, à esquerda. É inevitável que haja referências.

O PCP historicamente criticou o maoísmo. A China hoje não é propriamente o que foi. Na sua perspectiva, o regime que há hoje na China pode ter alguma validade, alguma referência positiva?
A resposta é muito simples. Nós olhamos para a China e para as suas contradições e procuramos compreendê-las. Nunca defendemos modelos de construção de sociedade. Nós não temos um modelo. Olhamos para a China como um processo. Começamos por considerar a grande revolução de 1949 e o seu imenso significado para o mundo, nomeadamente para o mundo subdesenvolvido. Naturalmente que na sequência da construção do socialismo na China houve muitas alterações, muitas mudanças. O maoísmo na sua essência esquerdista, cisionista foi abandonado. Os dirigentes chineses afirmam o processo de construção do socialismo, considerando que estão ainda na fase inicial e que, portanto, precisam de desenvolver as forças produtivas para, depois, sobre elas assentar a construção da nova sociedade. E é neste processo e desenvolvimento das forças produtivas e da inserção da China na divisão internacional do trabalho que surgem interrogações e contradições que observamos com a máxima atenção, porque a China representa muito e o maoísmo foi extremamente prejudicial ao Movimento Comunista Internacional (MCI) e à revolução portuguesa.

No Congresso, afirmou que não se sabe quando se chegará à sociedade socialista, que poderá não ser em tempo de vida das actuais gerações. Considera que esta convicção política é hoje motivadora do eleitorado?
Tempos houve no desenvolvimento do movimento operário e do movimento comunista em que se pensava que o caminho para o comunismo era mais rápido. A vida veio a mostrar que o processo de edificação da nova sociedade é mais complexo e eventualmente mais demorado do que supúnhamos. Ter havido derrotas do socialismo; este grande salto atrás na história, efectivamente, bate na consciência das pessoas e não é mobilizador. Para retomar o movimento comunista ascendente não será fácil. É uma tarefa que exige trabalho e muita paciência. Mas consideramos que o capitalismo vive uma crise, tem contradições insolúveis, que encerra perigos imensos para a humanidade, destruição, não falo sequer da ecológica, falo da nuclear. Temos vivido nos últimos meses momentos de tensão. Mas ao mesmo tempo que existem estes grandes perigos, consideramos que existem grandes potencialidades revolucionárias e que uma situação que hoje é de refluxo no MCI, que é de retrocesso, de recomposição de forças, pode passar rapidamente a uma situação de avanço. A própria experiência russa mostra isso. Os bolcheviques eram muito minoritários no processo revolucionário que vem desde 1905 e transformaram-se porque tinham uma linha política justa, uma teoria correcta.

É essa justeza da linha política e da proposta que irá ser mobilizadora do eleitorado?
Não temos dúvida. O camarada Álvaro [Cunhal] costumava dizer: "Nós preferimos perder votos e dizer a verdade e explicitar francamente às massas as nossas convicções, do que ganhá-los dizendo a mentira". Insistimos nas nossas opiniões e análises, que são as que estamos convencidos que são as que melhor defendem os interesses dos trabalhadores e do povo. Não vivemos na sociedade a fazer propaganda do comunismo, vivemos a intervir em defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo e em defesa da soberania do nosso país. E, simultaneamente, chamando a atenção para as experiências históricas que são condenadas pela classe dominante.

Como é que a recuperação do MCI é feita num mundo que passou pela revolução tecnológica que transformou as relações de produção e a comunicação? Que papel atribuem a instrumentos como a Internet e as redes sociais?
Só posso dizer que é uma responsabilidade dos comunistas, que são portadores de uma teoria que consideramos científica, que é o materialismo dialéctico e histórico, fundado por Marx e por Engels, e que teve o seu desenvolvimento com Lenine e passou de marxismo a marxismo-leninismo. É ver as novas realidades. Somos favoráveis ao avanço científico e consideramos que este desenvolvimento das forças produtivas é a própria base em que assenta o socialismo e o comunismo. É esse desenvolvimento das forças produtivas que com o proletariado é, em si mesmo, coveiro do capitalismo. Porque os processos em curso de desenvolvimento científico e técnico — que exigem adaptação, novas reflexões, novas soluções, que não são exactamente as mesma do tempo de Lenine — não cabem no quadro do capitalismo. Basta ver e ler o que se está a dizer e a escrever sobre a chamada quarta revolução industrial e as suas consequências no plano do emprego. E as soluções ou falsas soluções ou inquietações que campeiam em certos sectores. A começar pela inquietação de quem compra o que é produzido, quem paga para que o capital realize a mais-valia. O próprio marxismo, na nossa concepção, deve desenvolver-se em ligação com os novos fenómenos e tem de incorporar reflexão acerca das novas tecnologias e destas novas realidades. Não digo que estejamos muito avançados, mas temos consciência desta nossa responsabilidade.

No seminário, a situação política portuguesa vai certamente surgir. O PCP apoia parlamentarmente um Governo que tem um carácter de classe que o próprio PCP rejeita. Como é que este apoio se compatibiliza com esta busca da construção do socialismo?
Se há uma lição que se pode tirar da revolução de Outubro e do desenvolvimento do marxismo por Lenine ela tem que ver justamente com a questão das alianças. Não estou a dizer que há uma aliança entre nós e o PS, porque não há. Mas há uma convergência parlamentar pontual, tendo como ponto de partida a posição conjunta que assinámos. E se há uma coisa que a táctica leninista ensina é que, na luta revolucionária, na luta pelo objectivo fundamental que é o socialismo e o comunismo, a classe operária, os trabalhadores e o seu partido, o PCP, devem recorrer a todas as alianças, convergências, mesmo circunstanciais, mesmo provisórias, mesmo em torno de objectivos limitados, que façam avançar o processo e que respondam aos interesses das massas. Estamos convencidos que o acordo que fizemos com o PS — muito limitado, nunca escondemos que era muito limitado — respondeu e ainda responde a interesses fundamentais que tinham sido calcados aos pés.

Portanto, não há contradição?
Não vimos nenhuma contradição. Haverá contradição, no momento em que se perca de vista os objectivos finais, estratégicos e se trabalhe apenas a conjuntura e os objectivos imediatos, cai-se no reformismo e deixa-se de ser um partido revolucionário.

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