World of Wine: a vista do Porto para Gaia com mais um chiringuito

O Mundo do Vinho pretende afirmar-se como a nova Disneylândia de Vila Nova de Gaia.

Começou por ser planeada para ser a Cité du Vin, à semelhança da homónima de Bordéus, mas a ambição de algo maior, e certamente o sonante acrónimo WoW, combinaram-se para lhe dar o nome de World of Wine – Mundo do Vinho.

O Mundo do Vinho é um enorme complexo que vai emergir no miolo da encosta do centro histórico de Gaia, e será constituído por vários museus, espaços para exposições temporárias, restaurantes, lojas de artesanato, uma escola de vinhos e uma zona de estacionamento. Constitui um investimento a rondar os 100 milhões de euros do grupo Fladgate Partnership formado pela Taylor’s, Croft, Fonseca e Krohn, sendo parte deste montante proveniente de apoios comunitários, nomeadamente do programa Jessica (raio de nome).

Este enorme complexo não será uma construção de raiz; advirá principalmente da conversão de armazéns de vinho do Porto, prevendo-se a demolição parcial dos volumes existentes. Situado no coração da encosta do centro histórico, o Mundo do Vinho, ou o WoW, está colado ao hotel Yeatman, também da Fladgate Partnership. Serão dois mastodontes a pastar na encosta.

Dominique Saunier, geógrafo francês, realizou há cerca de três décadas um estudo sobre o Entreposto de Vila Nova de Gaia. Na altura contabilizou cerca de 550.000 m2 de área de armazenamento, com capacidade para cerca de dois milhões de hectolitros de vinho. Constatou também que cerca de 60% do território da área demarcada como Entreposto era ocupado por caves de vinho do Porto. Desta área, a maior parte do espaço era destinado ao armazenamento de vinho. Em tempos, Camilo Castelo Branco chamou-lhe a maior taberna do mundo.

A candidatura desta área a Património Mundial da UNESCO como extensão do Centro Histórico do Porto já foi equacionada pelos decisores políticos. Na intenção de candidatura, antecipada na Operação de Reabilitação Urbana de Gaia, realça-se que: “No contexto nacional, e internacional, o Entreposto de Gaia preserva um conjunto singular de armazéns de um porto de vinho com forte espessura histórica, tanto mais importante quanto, devido à pressão imobiliária, a alterações funcionais e económicas, à modernização arquitectónica ou a opções de deslocalização, a maior parte dos entrepostos históricos de vinho perderam as suas funções [...] ou deixaram de marcar a paisagem urbana em que se inserem.” (Rocha; Amaral, 2016). Hoje, o aproveitamento turístico e a gradual transferência da área de armazenamento do vinho do Porto para o Douro estão a esvaziar o lugar do vinho que contribuiu para a sua identidade.

O Mundo do Vinho pretende afirmar-se como a nova Disneylândia de Vila Nova de Gaia: um enorme parque temático dentro do parque temático ligado ao vinho que se tem vindo a configurar nos últimos anos, para cativar mais turistas... um enorme parque temático fechado com as portas abertas para quem pode consumir e sem equipamentos com potencial para serem usados no quotidiano pela população local, que tem vindo a diminuir na freguesia de Santa Marinha, acompanhando a tendência, com menos expressão, é certo, das freguesias do Centro Histórico do Porto.

Tendo em conta as transformações urbanas dos últimos dez anos, podemos convictamente apontar a tendência generalizada de transformação do Entreposto de Gaia num enorme “Shopping da Memória do Vinho”. As caves de Vinho do Porto de Gaia têm interesse patrimonial de conjunto e, como tal, a intervenção que descaracteriza cada uma das peças terá um grande impacto no todo a que pertence. O que tem acontecido nos últimos anos: a intervenção em cada uma das peças como monumentos isolados, descontextualizados da malha urbana, tem desfigurado a imagem do Entreposto de Gaia, que corresponde quase integralmente ao seu centro histórico.

O turismo tem esta tendência canibal de devorar aquilo que o atraiu e de transformar o real em simulacro, evento e espectáculo. Não havia necessidade. O dinheiro não é a única medida do valor das coisas.

Já que tudo isto se permite, que não haja depois choradeiras patrimoniais, missas pela genuinidade perdida ou gritaria sobre o modo como se constrói, onde e o quê. Com estes exemplos, é a legitimidade das entidades públicas que está em causa, é a confusão na cabeça do comum cidadão que acha que se for poderoso aquele que quer fazer, fará onde quiser. Entretanto, quem quiser vender gelados ou castanhas na marginal deve precisar de 300 licenças e dois alvarás, claro.   

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