Eleições à inglesa e centralismo à portuguesa

Tudo deve ficar em Lisboa porque já lá está quase tudo e só lá poderá vir a ficar o que ainda falta.

1. O Reino Unido está a passar por uma das fases mais difíceis da sua história recente e isso ficou bem patente na campanha que antecedeu o acto eleitoral de quinta-feira passada. Se bem que muito perturbada pela ocorrência sucessiva de dois atentados terroristas, a campanha ficou marcada pela manifestação de total desorientação programática, política e estratégica por parte da líder conservadora e Primeira-Ministra, Theresa May, e pela surpreendente adesão de amplos sectores da sociedade ao discurso do líder trabalhista, que a elite do seu próprio partido tentara poucos meses antes defenestrar. O estado de confusão mental denotado no discurso dos conservadores é de alguma forma o reflexo de um desnorte mais geral induzido por uma verdadeira crise de identidade nacional. Quando, há um ano atrás, os britânicos optaram por abandonar a União Europeia estavam, consciente ou inconscientemente, a caminhar para um território desconhecido, sem qualquer tipo de preparação prévia. De então para cá, o que se foi progressivamente revelando foram duas coisas notoriamente negativas: a inconsistência política na abordagem do tema das relações com a União Europeia e a degradação da situação económica, particularmente visível nos últimos meses. May não foi apenas uma péssima candidata, já antes tinha sido uma medíocre líder do governo. Talvez demasiado confiante numa hipotética divisão europeia, nunca encontrou o tom certo a adoptar na fase pré-negocial, dando a imagem de um país enredado em dúvidas e contradições. Ela, que até se tinha posicionado - ainda que com pouca convicção -, do lado dos opositores à saída da União Europeia, passou subitamente a preconizar um hard Brexit, o que já constituía um sinal de grande fragilidade. A decisão de antecipar as eleições numa altura em que as sondagens apontavam para uma folgadíssima vitória diante de Jeremy Corbyn, que aparecia aos olhos da opinião pública como uma representação mumificada de uma esquerda estatizante e proclamatória, mais não foi, no fundo, do que uma tentativa de salto em frente que acabou por se revelar catastrófica.

Michel Barnier, um homem a quem incumbe a liderança das negociações pela parte europeia, foi muito claro numa entrevista dada no início desta semana: o processo negocial que dentro de dias se vai iniciar deve decorrer dentro dos prazos previamente estipulados e sem qualquer concessão excepcional por parte da União Europeia. Nessa entrevista, o francês enuncia com clareza as prioridades na discussão a levar a cabo: a questão das fronteiras, a dos cidadãos europeus e a das obrigações financeiras. Nenhum destes temas é de tratamento fácil. É bem provável que o processo negocial se venha a revelar especialmente complexo e imprevisível. Barnier não deixa aliás de lembrar que numa situação de impasse absoluto os britânicos passariam a relacionar-se com a União Europeia no âmbito da Organização Mundial do Comércio, e estritamente aí, com todas as consequências negativas facilmente antecipáveis. Não é difícil perspectivar a dimensão e a importância do que está em causa.

Neste cenário, parece pouco plausível que May consiga sobreviver durante muito tempo ao desastre que ela própria em boa medida motivou. Até lá, haverá um governo débil a tratar a mais importante negociação das últimas décadas. Sabemos por experiência histórica que executivos débeis tendem a adoptar posições mais radicais e a exibir uma retórica mais dura. Infelizmente, nada nos permite augurar algo de medianamente razoável na fase inicial das negociações entre o Reino Unido e a União Europeia, com o que isso significa de factor gerador de instabilidade num e noutro lado do canal de Inglaterra.

2. O Governo português tomou a decisão de apresentar a candidatura da cidade de Lisboa ao acolhimento da Agência Europeia do Medicamento, presentemente sediada em Londres. Tal decisão, que não foi antecedida de qualquer discussão no espaço público, originou uma viva controvérsia, a qual tem desde logo a vantagem de chamar a atenção para o arcaísmo centralista que continua a conformar o sistema decisório português. Não há nenhuma explicação plausível para uma opção desta natureza que não seja precisamente a que radica na força da inércia do centralismo.

Aliás, esta questão concreta remete para um tema mais geral: o da distribuição geográfica de múltiplos organismos públicos que não têm que estar necessariamente sediados na capital do país. Uma decisão dessa natureza, devidamente ponderada, contribuiria de forma determinante para a revitalização de algumas das nossas principais cidades, permitindo assim o reequilíbrio do território nacional. É bom aliás que se perceba que este assunto não se reduz a um confronto entre as duas áreas metropolitanas mas diz respeito ao país na sua totalidade. O exemplo que me acode ao espírito de modo mais imediato é de resto o da transferência do Tribunal Constitucional para Coimbra. Não há qualquer motivo para que isso não possa ser concretizado.

Voltando contudo à questão da Agência Europeia do Medicamento, há que realçar a posição declaradamente assumida pela Câmara Municipal do Porto, que obrigou o Governo a levar a cabo o esforço de justificação da opção tomada. Essa justificação é de tal maneira abstrusa que só pode significar uma coisa: que a decisão em causa não assenta em qualquer argumento  racionalmente válido e constitui um acto arbitrário. Por isso mesmo, os argumentos invocados remetem para um princípio de auto-construção permanente do centralismo, que passaria a funcionar como uma máquina autónoma, destinada a uma reprodução eterna. Tudo deve ficar em Lisboa porque já lá está quase tudo e só lá poderá vir a ficar o que ainda falta. Claro que este problema não é um problema específico do actual Governo e muito menos do actual Primeiro-Ministro. Infelizmente, estamos perante uma verdadeira anomalia histórico-cultural. O que não temos é que nos resignar perante ela.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários