As mulheres de César e a ética republicana

É possível que geneticamente a família César seja atraída por cargos de nomeação política tal como as abelhas são atraídas pelo pólen?

Às vezes nós somos injustos. Achamos que todos os amigos e todos os familiares dos políticos importantes só chegam onde chegam graças a cunhas, nepotismo ou — como se costuma dizer na minha terra — a um “olhamento”. Como todas as generalizações, esta também é muitas vezes abusiva. Nem todos os filhos sobem na vida à custa dos pais, dos irmãos ou dos tios. Ninguém diz que Miguel Sousa Tavares só chegou onde chegou por ser filho de Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares. Que Daniel Oliveira é quem é por ser filho de Herberto Helder. Ou que Ricardo Costa só é alguém no jornalismo por ser irmão do primeiro-ministro.

Há famílias extraordinárias que produzem descendência brilhante, seja por culpa dos genes ou da formação, como é o caso dos Lobo Antunes. E quando, por algum acaso do destino, nós conhecemos as pessoas que são publicamente reduzidas ao epíteto de “filho de”, “irmão de”, “amigo de” ou “namorada de”, com frequência sentimos o peso dessa injustiça. Por exemplo, recordo-me muito bem de há alguns anos João Taborda da Gama ser apresentado nos jornais como “o filho de Jaime Gama” — e eu, que lhe conhecia o brilhantismo, a originalidade e o talento, achei que era uma simplificação totalmente imerecida.

Ontem, a propósito do meu texto “Uma cultura política lastimável”, recebi uma mensagem de alguém próximo de Diogo Lacerda Machado (não se assustem: não foi o primeiro-ministro) profundamente indignado com as minhas palavras. Quem escreve nos jornais recebe muitas manifestações de desagrado, e fica rapidamente imune ao hate mail. Mas não era um desses casos: havia ali um sentimento genuíno de injustiça, por eu estar a pôr em causa um homem que essa pessoa considerava (dando argumentos para isso) como absolutamente honesto, trabalhador e dedicado à causa pública. É possível que tenha toda a razão, e não possuo quaisquer provas em contrário. O problema está na dificuldade em separar a nomeação por mérito da nomeação por favor em relações pessoais ou familiares que envolvam cargos públicos. Como é que se distingue? Onde é que se traça a linha?

Nem por acaso, na mesma altura que recebia aquela mensagem, o Observador publicava novos desenvolvimentos da história da família de Carlos César. Já há algum tempo que a comunicação social chamara a atenção para a forma como o clã César se expandia pelos mais variados ramos da administração pública. Quase todos os familiares directos do líder parlamentar do PS estão em cargos de nomeação ou eleição política. A mulher. O filho. A nora. O irmão. E, agora, a sobrinha, contratada pela Gebalis (empresa municipal de Lisboa) depois de sair da Junta de Freguesia de Alcântara (do PS, claro). O i contava ontem que até já circulam anúncios pela Internet: “Procuro alguém solteiro da família de Carlos César para relação séria.”

É possível que geneticamente a família César seja atraída por cargos de nomeação política tal como as abelhas são atraídas pelo pólen? Teoricamente, sim, mas enquanto não se faz a investigação científica, importa fazer a análise política. E essa análise, como é óbvio, não pode ser favorável a este tipo de procedimentos. Claro que qualquer pessoa que critica tais situações corre o risco de ser injusta com pessoas competentíssimas. Mas o que se perde nas injustiças pontuais ganha-se na exigência geral. Até porque quem é realmente bom naquilo que faz não precisa de favores de papás, mamãs, tios ou amigos para vir a ser alguém na vida.

 

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