José pelo mundo

Este José, último degredado para Cabo Verde, poderá ainda ser o bisavô de alguém que lê estas linhas hoje.

O que um dia no Arquivo Nacional de Cabo Verde me ofereceu: parece que o último degredado de que há registo a chegar a estas ilhas proveniente da Lisboa metropolitana chamava-se José N... , chegou em 1874 e tinha então 38 anos.

Um juiz de Santarém tinha proferido a sentença. Três anos de degredo, pelo crime de ferimentos, as nossas ofensas corporais de hoje, para uma das então designadas possessões de primeira classe em África. Terá certamente passado pelo Limoeiro, aguardando o embarque. E chegaria finalmente José à vila da Praia, condenado a 3 anos em Cabo Verde, a bordo do vapor Cambridge, atracado no dia 14 de Fevereiro de 1874, segundo a burocracia da época aqui devidamente conservada.

Depois fez o que era possível a um degredado fazer na segunda metade do século XIX. Não assentou praça, mas ficou afiançado, ou seja, ao trabalho de um proprietário ou comerciante local. E provavelmente por ali continuou uma vez cumpridos os anos de pena. Ou terá regressado aquela sua urbe de origem, tão metropolitana que até taurina e sem mar à vista? Este José, último degredado para Cabo Verde, poderá ainda ser o bisavô de alguém que lê estas linhas hoje.

Claro que, depois de 1874, Cabo Verde continuaria ainda associado à deportação provinda do Portugal europeu. Mas esse é já o plano de uma deportação política, que estava fora do circuito judicial normal. Foi assim na Primeira República, foi assim no Estado Novo, que inaugura a colónia do Tarrafal, na ilha de Santiago.

É ainda na Primeira República, também pela documentação deste arquivo, que uma identidade entre a ilha geográfica e a ilha penal se nota como fortemente apelativa. Por exemplo, a própria província de Cabo Verde queria então a sua colónia penal, de acordo com o seu governador e o expediente trocado com Lisboa pelos anos de 1912, 1913, 1914. Lisboa, aliás, inicialmente desconfia: manda o governador ver se tem dinheiro e condenados suficientes para uma eventual colónia penal para os condenados locais, descartando o envio de metropolitanos. E parece que nem dinheiro nem condenados, afinal. Uma relação de seus eventuais ocupantes, feita pelo delegado do Ministério Público na comarca da Praia, chega apenas aos 28 condenados a trabalhos públicos num período de cinco anos... E mais 16 condenados, a períodos de 3 dias a 1 ano, mas agora contados na comarca de S. Vicente, Barlavento.

Mas Lisboa promete estudar o assunto e, para tal, até um perito chegaria em breve às ilhas. O delegado do procurador bacharel Carlos Frederico de Castro Pereira Lopes iria finalmente estudar a implantação de colónias penais ultramarinas, para o que teria sido nomeado por portaria de 21 de Agosto de 1912. Queixa-se o governador, tempos passados – o perito afinal nunca chegou. Diz em discurso directo o intendente das ilhas, que fez até, e enviou para Lisboa, um desenho do que deveria ser a colónia penal, com um epigrafado palheiro, telheiro para os bois de serviço, casa para o amanuense e tudo o mais devido:

Este funcionário nunca se apresentou.

E, do ministério das Colónias, silêncio de ínsula.

No mesmo período, diga-se a bem da verdade, andava também ocupado o governador com a ilha de Santo Antão. Imagine-se que um juiz recém-chegado, de seu nome Morais, resolvera verificar as contas da administração do concelho. O administrador não gostou. Nem o delegado do procurador e nem umas boas dezenas de “cidadãos exemplares” da ilha, logo seguidos pelos seus demais, seguramente tão exemplares quanto os primeiros, com a diferença de serem apenas também seus dependentes, nas variadas formas de dependência de que Santo Antão em 1913 seria patrono.

Na pasta do arquivo relativa a este tema, acumulam-se ao magote os telegramas nos últimos meses daquele ano. O juiz pede ao governador uma força armada para Santo Antão com urgência, temendo pela sua vida. O governador manda o administrador pôr-se ao serviço do juiz. O administrador diz que tudo está tranquilo e sereno na ilha, nem teria sido preciso enviar afinal essa dezena de soldados de S. Vicente. Até envia uma fotografia extraordinária, onde se vêem umas centenas de pessoas perfiladas à saída de uma reunião na Câmara onde se terá assentado na necessidade da transferência do juiz...

A solução final do caso, essa não a conta o arquivo. Mas a imagem não deve oferecer dúvidas. “Vista parcial -  O povo sahindo da Camara Municipal de Santo Antão, onde, em sessão extraordinaria do dia 18-11-913, pediu a transferencia do juiz de direito da comarca do Barlavento, Dr. A. de Matos”, lê-se como legenda da foto, trabalho de Estrela Amador, fotógrafo. Ah, o povo!... – como diz o político de 1913. E como ele é sempre belo, quando fotografado quedo e pronto para a eternidade.

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