A crise no Golfo Pérsico pode ser o fim para a Al Jazira?

Os países na origem do bloqueio ao Qatar estão a pressionar para que o canal de televisão pan-árabe seja encerrado. Mas o Governo de Doha já advertiu: a Al Jazira é "um assunto interno" e não haverá cedências.

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Delegação palestiniana da Al Jazira em Ramallah, na Cisjordânia REUTERS/Fadi Arouri

Al Jazira, a estação de televisão pan-árabe que ganhou uma súbita audiência mundial durante a Primavera Árabe de 2010, encontra-se ameaçada de extinção, temem muitos analistas do Médio Oriente.

Na segunda-feira da semana passada, o Egipto e outros estados vizinhos uniram-se à Arábia Saudita, aos Emirados Árabes Unidos e ao Bahrain para cortar relações diplomáticas com o Qatar, que fundou e financia a estação.

Quase de imediato, Al Jazira sofreu um golpe. A Arábia Saudita fechou os escritórios em Riad e retirou-lhe a licença de operação, acusando-a de promover grupos terroristas no Iémen e desencadear discórdias na Arábia Saudita.

Representantes da Jordânia seguiram o exemplo, anunciando o fecho dos escritórios em Amã e retirando-lhes a licença de operação neste país que recebe apoio financeiro da Arábia Saudita. Agora, Al Jazira está a ser visada noutras partes da região.

Na semana passada, activistas de extrema-direita de Israel ocuparam os escritórios em Jerusalém Oriental de assalto, exigindo o seu fecho, de acordo com a organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras, especializada em defender a liberdade de expressão.

O canal de língua árabe, que também tem uma versão em língua inglesa, tem suscitado controvérsia desde a sua fundação, há mais de duas décadas, pela família real qatari, que investiu milhões de dólares no empreendimento arriscado enquanto reivindicava a sua independência jornalística.

Na verdade, os analistas brincam com o facto de o Qatar ser talvez o único país menos famoso que a estação televisiva que financia, Al Jazira.

Alguns americanos acusam-na de ser porta-voz de organizações terroristas, devido ao que consideraram ser a cobertura mediática tendenciosa dos ataques de 11 de Setembro nos Estados Unidos e das transmissões, realizadas nos rescaldos desses ataques, de inúmeros comunicados de Osama bin Laden. A Administração Bush criticou fortemente o canal por promover propaganda anti-americana.

Contudo, no meio de tantas críticas, especialistas do Médio Oriente e alguns do Ocidente consideram a estação de televisão uma conquista para o mundo árabe. Abriu uma plataforma para diálogo livre e dissidências políticas. No decorrer da Primavera Árabe, espectadores mundiais louvaram a Al Jazira pelo constante acompanhamento no terreno dos protestos na praça Tahrir, no Egipto.

Ainda assim, o poder e alcance que deu ao Qatar tem sido reforçado na disputa crescente no Golfo Pérsico, em que o Egipto, a Arábia Saudita e outros países vizinhos acusam a estação de dar voz à Irmandade Muçulmana e a outras organizações terroristas. Agora, os analistas apontam para o risco da extinção da chama de Al Jazira.

Sultan Sooud Al-Qassemi, um conceituado comentador de assuntos árabes, escreveu na Newsweek que a estação há muito que é "um pomo de discórdia" na região, mesmo antes da Primavera Árabe, e que este pode ser o ponto de ruptura. Previu que os países do Golfo iriam exigir o "término completo da Al Jazeera antes que qualquer mediação tivesse lugar".

Noha Mellor, professora na Universidade de Bedfordshire, no Reino Unido, disse ao The Washington Post que acredita que o Qatar irá ser forçado a ceder e que a estação terá de "ser sacrificada".

"Ou terão de modular o seu discurso", afirmou Mellor, principalmente através da redução da cobertura da Arábia Saudita, técnica já aplicada no passado pela estação para aplacar o governo de Riad.

Os Repórteres Sem Fronteiras reprovam as medidas aplicadas à estação, dizendo que a imposição do fecho dos escritórios é equivalente a censura política.

"Na Arábia Saudita, esta violação da liberdade de informar agrava a já muito má reputação do país quanto à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa", diz Alexandra El Khazen, chefe do grupo para o Médio Oriente da organização. "Pedimos que as autoridades sauditas revoguem esta decisão e que permitam que a Al Jazira retome a sua actividade".

Al Jazira não respondeu ao pedido para comentário do The Washington Post, contudo, quando contactada pelos Repórteres Sem Fronteiras confirmou que esta não era a primeira vez que o governo saudita tentava impor restrições à estação.

"Acreditamos firmemente que estas medidas são injustificadas por parte das autoridades contra a estação e as suas operações", declarou Al Jazira. "Apelamos ao governo para que respeite a liberdade de imprensa e que permita que os jornalistas continuem a realizar o seu trabalho livres de intimidações e ameaças".

Alguns especialistas na região estão optimistas quanto ao futuro da estação, afirmando que é um activo demasiado valioso para que o Qatar desista dele.

"É a única forma de fazer com que a sua voz se sobreponha à da dos sauditas", declarou ao The Washington Post Tal Samuel-Azran, director do programa de comunicação internacional do Centro Interdisciplinar de Herzliya, em Israel. "eria como um professor ou um director de uma escola abdicar do seu megafone".

Mais importante ainda é a força da influência que tem no Médio Oriente. Uma sondagem realizada por Samuel-Azran, em que participaram um milhão de árabes, mostrou que o único ponto comum entre todos era que seguiam Al Jazira.

"Ficaria extremamente surpreendido se a fechassem", afirma Noha Aboueldahab, investigadora convidada do Doha Center da Brookings Institution. Acrescentou ainda que a estação é uma peça central do soft power do Qatar. E que a vulnerabilidade de Al Jazira, neste momento, se deve ao facto de os regimes autocratas da região continuarem a vê-la como uma ameaça por ser usada com uma plataforma para vozes controversas, líderes da oposição e activistas.

"É uma vítima do renovado autoritarismo na região", diz Aboueldahab.

Al Jazira já foi atacada no passado. O grupo de média enfrentou hostilidade crescente nos rescaldos da Primavera Árabe, e uma enorme diminuição do número de espectadores egípcios, quando foi acusada de favorecer a Irmandade Muçulmana, considerada uma organização terrorista pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos. Ambos apoiaram o golpe de 2013 contra Mohammed Morsi, um líder da Irmandade Muçulmana.

Al Jazira tem desmentido repetidamente as acusações e os laços com grupos extremistas, defendendo o seu noticiário como sendo objectivo e justo.

De acordo com os Repórteres Sem Fronteiras, o Egipto forçou a saída de Al Jazira do país em 2013 e, mais recentemente, o presidente egípcio bloqueou o seu site juntamente com 20 outros, acusados de semelhante parcialidade. Ao longo dos anos, as autoridades egípcias têm vindo a deter repórteres e funcionários da estação.

A estação tem também tido a sua quota-parte de obstáculos no hemisfério Ocidental.

Al Jazira inaugurou o seu canal em língua inglesa em 2006. O canal é transmitido para mais de cem países e é considerado um projecto completamente diferente, indica Mellor. "É de longe muito mais profissional", ainda que também seja financiado pelo governo do Qatar.

A estação fez investimentos ambiciosos de forma a lançar a Al Jazira América em 2013, inicialmente disponível nas casas de 50 milhões de americanos e com o objectivo definido de divulgar notícias sérias e objectivas. No entanto, as audiências foram péssimas e o povo americano não se interessou pelos seus programas. Muitos americanos, incluindo comentadores da Fox News, continuaram a tentar associar o canal a Al-Qaeda. A última emissão do canal americano ocorreu em 2016.

Apesar da sua capacidade de resistir aos incessantes golpes e acusações, o futuro da estação pan-árabe é incerto. Vai ser difícil perder a reputação de ser um canal que apoia o Qatar e que tem uma agenda política. "São financiados na sua totalidade pelo emir, quão objectivos podem ser?", perguntou Mellor.

Porém, para alguns, a existência do canal é crucial. "Imagine que a CNN desaparecia dos EUA", diz Samuel-Azran. "Sem dúvida que se conseguem adaptar", acredita Samuel-Azran. "A Al Jazira pode mudar."

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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