A lenta emergência de um novo sistema partidário

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A primeira volta das legislativas deverá marcar mais um salto qualitativo na decomposição do sistema partidário francês. O que está em jogo não é o regime político nem a Constituição ou as instituições da V República. A eleição presidencial marcou o fim de uma era: pela primeira vez, os candidatos apurados para a segunda volta não pertenciam a nenhum dos partidos tradicionais da esquerda e da direita. Pôs em causa um tabuleiro organizado em termos de esquerda-direita.

Restava aguardar as legislativas. Os Republicanos (LR, direita) tinham uma fugaz esperança de vencer e impor uma “coabitação” a Emmanuel Macron. Depressa as sondagens os desiludiram. A tradição de conceder uma maioria ao novo Presidente afirmou-se de forma irresistível. Os franceses não só manifestavam a vontade de confirmar Marcron como a de amplificar a sua vitória, anotou a politóloga Chloé Morin. Desfez-se a figura da “vitória por defeito”.

A decomposição

Escrevendo dias antes das presidenciais, outro politólogo, Eddy Fougier, explicava que o que estava em causa era “pura e simplesmente a sobrevivência do sistema político em vigor desde 1981”. Este sistema está em decomposição desde que a Frente Nacional (FN), de Marine Le Pen, venceu as eleições europeias de 2014 e a primeira volta das departamentais e das regionais de 2015, passando a um patamar acima dos 20% do eleitorado. Com isto, a cena política deixava de ser bipolar para dar lugar a uma instável tripolarização.

Frisava Fougier que Macron era a mais credível alternativa ao velho sistema. Fazia, no entanto, uma ressalva: “Devem encarar-?-se duas formas de resiliência do sistema político. A primeira seria, evidentemente, a qualificação de François Fillon para a segunda volta e a sua eventual vitória a 7 de Maio. (...) A segunda seria uma vitória da direita tradicional nas legislativas de 11 e 18 de Junho, (...) situação que poderia conduzir a um novo período de ‘coabitação’ com o chefe de Estado acabado de eleger.” E anunciava a “morte lenta” do sistema caso se verificasse uma recomposição política que desse a Macron uma maioria. Foi o que aconteceu.

Esmagado nas presidenciais, o Partido Socialista não deu qualquer sinal de recuperação. Pelo contrário, alguns dos seus candidatos, entre eles ex-ministros de François Hollande, como Marisol Touraine, tiravam dos cartazes o emblema do PS e colocavam-se sob a égide da nova “maioria presidencial”. Já antes, o ex-primeiro ministro Manuel Valls anunciara a “morte do PS” e o seu voto em Macron.

No LR, aconteceu algo de inédito. Muitos candidatos propuseram-se apoiar o Governo de Macron ou fazer uma oposição “construtiva”, o que se poderá vir a traduzir-se na criação de um grupo parlamentar autónomo dos “construtivos”, o que fracturaria a unidade da direita. Não pode haver mais clara prova da “decomposição” do antigo sistema partidário.

Há aqui uma enorme ironia. O PS e o LR temem ter o seu pior resultado de sempre. A FN está embrulhada numa crise estratégica e em risco de não conseguir sequer um grupo parlamentar. Os Insubmissos de Jean-Luc Mélenchon estão em perda de velocidade. Mas o República em Marcha, de Macron, tem um “problema de ricos”: a hipótese de uma vitória excessiva que incita à “indisciplina” e à fragmentação.

Esquerda e direita

Da decomposição de um sistema partidário não emerge automaticamente um novo, mas apenas sinais de renovação. O primeiro deles é o enfraquecimento do eixo esquerda-direita como estruturador da competição e do conflito. Esquerda e direita, como espaços de identificação política, não desapareceram. Terão mudado de lugar ou de sentido.

Gérard Grunberg, politólogo e historiador do socialismo francês, frisa que os partidos da direita e da esquerda foram-se aproximando, ou divergindo menos, em questões fundamentais, da economia aos valores societais. Esta dilução de fronteiras favorece a denúncia do “sistema” e o refúgio de votos nos extremos.

Por outro lado, questões de primeiro plano como o projecto europeu, a resposta à globalização ou a clivagem sociedade aberta-sociedade fechada atravessam e dilaceram os partidos tradicionais, tanto o PS como o LR.

Note-se ainda que a noção de “centro” de Macron não corresponde à ideia tradicional e, muito menos, a uma forma disfarçada de “grande coligação”. Não é um centro neutro, é um centro radical: pretende afirmar-se como “pólo progresista” perante o “pólo conservador”, indo buscar ideias e votos à esquerda e à direita. A “oferta política” de Macron, assente num “pensamento social-liberal”, baralhou os mapas tradicionais e demonstrou que correspondia “a uma procura latente no eleitorado”, assinala Grunberg.

Não sabemos como se vai reestruturar o quadro político. Que novas formações vão emergir. As primárias do PS e do LR indicaram linhas de fractura que não parecem susceptíveis de serem suturadas. Exigem rupturas e refundações. O resultado destas eleições não dará a “fotografia” do futuro mapa partidário: é uma ponte e um detonador para renovar o antigo e desenhar as novas fronteiras e clivagens.

jorge.almeida.fernandes@publico.pt     

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