Há alunos rotulados de “normais”

A escola tem de partir de onde os alunos estão e não de onde ela considera que os alunos deveriam estar.

Um dos compromissos mais radicais que se pode assumir em Educação é o de “educar todos”. A escola tal como a conhecemos organizou-se teoricamente neste princípio, mas, na realidade, sempre falhou na sua prática. A escola pública demorou muitos anos até achegar a todas as crianças, isto é, a permitir a todos os alunos o acesso, a entrada. Lembro que não há muitos anos atrás ainda se combatia em Portugal pelo acesso de todos os alunos à escola, sobretudo aos escalões mais altos da escolaridade obrigatória. Garantido o sucesso, levantou-se outra questão que se poderia resumir assim: todos os alunos podem entrar, mas quantos podem sair com sucesso?

A procura da resposta a esta questão iluminou vários obstáculos a este sucesso: muitos alunos não se mostravam capazes de progredir ao ritmo que o sistema lhes exigia e por este motivo reprovavam (ou, usando a metáfora cinegética, “chumbavam”); muitos alunos, desencorajados ou empurrados, saíam da escola sem concluir a escolaridade que se considerava essencial e básica. Em Portugal estamos ainda a lutar esta batalha do sucesso: detemos tristes recordes de reprovações e de reprovações precoces e a nossa taxa de abandono escolar coloca-nos em posições desprestigiantes nos rankings internacionais. A que se deve esta situação?

Um dos axiomas que se aprende quando nos começamos a interessar pela análise dos sistemas educativos é que as causas e as consequências dos fenómenos que pretendemos estudar são sempre múltiplas e interrelacionadas. Algumas pessoas mais desprevenidas sonham com o fator “x” que inexoravelmente produzirá o efeito “y”. Frequentemente se designa este sonho impossível por “engenharia social”, dado que se pensa que sistemas humanos complexos se poderiam influenciar e resolver através de medidas simples e singulares. Feliz ou infelizmente não é assim: fenómenos socialmente complexos como os que têm por palco a Educação só se resolvem através de atuações em várias áreas e muitas vezes estendidas no tempo.

Feita esta ressalva, retomamos a questão: a que se devem estes pobres resultados no combate ao sucesso e ao abandono escolar? Certamente a múltiplas razões. Por exemplo, recentemente, o Projeto Aqueduto desenvolvido em parceria entre o Conselho Nacional de Educação e a Fundação Francisco Manuel dos Santos estabeleceu uma relação entre o sucesso escolar e a escolaridade dos pais — sobretudo da mãe — das crianças. A estes fatores se podem juntar a desigualdade social, as assimetrias no nosso território, os valores que as famílias dão à escolarização, o apoio dado aos alunos, a forma como se encara na escola o currículo, enfim, uma grande multiplicidade de fatores que, como se disse, interagem e se influenciam mutuamente.

De todos estes fatores presentes, um deles parece ter uma importância central em todo este processo: a escola, talvez pela primeira vez na sua curta história de menos de dois séculos, arrisca-se a ver os seus fundamentos de valores e organização serem postos em causa. A escola tal como a conhecemos hoje vê o aluno como um ser inacabado e imperfeito que vai ser corrigido pelo efeito da Educação, organiza-se como se os alunos aprendessem todos e tudo ao mesmo tempo, agrupa os alunos com base em critérios de homogeneidade, assume que a Educação é, sobretudo, um processo de transmissão. Ora os alunos que chegam à escola hoje encontram-se numa situação estruturalmente diferente dos que chegavam há escola há 15 anos atrás. Esta diferença deve muito à popularização das tecnologias digitais que permitem o acesso a fontes de informação e meios de comunicação até agora impossíveis. Os alunos de hoje não encontram na escola a centralidade de motivação e de fonte de conhecimento que encontravam antes. E, perante esta situação, que pode a escola fazer?

Antes de mais, a escola tem de partir de onde os alunos estão e não de onde ela considera que os alunos deveriam estar. Não há muito tempo, ao trabalhar com um grupo de professores, eles mostraram-se desanimados por os alunos não estarem onde deveriam estar: atentos, participativos e interessados como deveriam estar nas aulas e nos manuais. A escola, se achar que os alunos estão desadequados, não será capaz de os ensinar. Há muitos anos, um documento da UNESCO afirmava que “não são as escolas que têm direito a certos tipos de alunos, os alunos é que têm direito à Educação”.

Em segundo lugar, a escola tem de acabar com a ideia de ensinar grupos homogéneos. Esta homogeneidade é responsável por muita segregação — aberta ou encapotada — que ainda persiste nas nossas escolas. Se os alunos devem ser “normais” e “homogéneos”, aos que não o são resta-lhes o rótulo de “especiais” e “diferentes”. O absurdo da ideia de grupos homogéneos — agora até se fala de “homogeneidade relativa”! — fortalece o valor que informa a má pedagogia: não ver as singularidades dos alunos e valorizar aquilo em que eles são menos interessantes e mais previsíveis.

Ironicamente, dizia-me um professor: “Na minha turma tenho de tudo: até alunos — coitados — que são rotulados de normais.” As escolas, e sobretudo os professores, precisam de quem caminhe ao seu lado para os ajudar a quebrar no pensamento e na prática estes mitos dos alunos não serem o que deles esperávamos, nomeadamente não serem “homogéneos”. Estamos em tempo de olhar corajosamente para estas mudanças. 

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