Afinal se elas conduziam camelos…

Para a família real saudita, quem conduzia camelos outrora tem de mostrar agora que é capaz de merecer conduzir automóveis.

Na corte da Arábia Saudita há príncipes muito mais avançados do que seria de esperar face ao absolutismo reinante na monarquia wahhabita, agora em pré-guerra com o Catar. O príncipe Faiçal Ben Abdallah, numa entrevista a uma cadeia de televisão saudita no primeiro dia de junho (Dia Mundial da Criança), deu conta da sua ideia: “A proibição feita às mulheres de conduzir foi-nos imposta […]. Outrora as mulheres tinham o hábito de conduzir os seus camelos […]. Deve ser reabilitada, representam metade da população e estão num estado de dependência […]. Têm de fazer prova de que são capazes de ter sucesso e de ter uma influência positiva na sociedade.” A ideia que lhes foi imposta a eles é a de deixar qualquer pessoa em dificuldade para alcançar o sentido da frase. Se lhes foi imposta no passado (presume-se), por que não acaba a imposição? Se continua a imposição de outrora, passa a ser atual...

Se as mulheres outrora conduziam camelos, devem ser reabilitadas e provar que podem deixar de ser dependentes. O atrevimento do príncipe é deslumbrante na sua grandeza humana. Não haveria plebeu capaz de chegar tão longe no que concerne à comparação entre o mundo de outrora e o atual.

Na verdade, se as mulheres conduziam camelos há séculos também poderão conduzir automóveis, dada a similitude entre os dados da comparação (camelo versus automóvel). E quer o camelo, quer o automóvel movem-se; o primeiro à velocidade do raciocínio do príncipe real, o outro à velocidade da potência dos cavalos de que o motor dispuser.

Como pode uma mulher reabilitada que conduzia camelos fazer prova de que pode conduzir automóveis? Para qualquer cidadão, mesmo o mais plebeu, a prova far-se-ia do seguinte modo: iria à escola de condução, pagaria as aulas teóricas e práticas e faria exame; se passasse ficaria habilitada a conduzir.

Exigir antes da efetivação do meio adequado para ter sucesso neste domínio (ir a exame) é o que se poderá chamar uma prova diabólica, impossível de se fazer. Não só para uma mulher, mas também para um homem. Como pode um homem, antes de realizar o seu exame, mostrar que pode ter sucesso?

Este é um raciocínio difícil de seguir pela família real saudita. Quem conduzia camelos outrora tem de mostrar que é capaz de merecer conduzir automóveis, ao contrário dos homens que, por aprendizagem contida na inalação do oxigénio que respiram, podem fazer exame de condução.

O problema da reabilitação das mulheres pode não se confinar ao acesso à carta de condução. Para tirar a carta de condução e poder conduzir, a cidadã saudita necessitaria de ir à escola onde se ministram os ensinamentos teóricos e práticos. A mulher saudita não pode circular sozinha nas ruas sem a guarda de um familiar. A partir desse momento, ou o reino deixaria as mulheres circularem sozinhas, o que contrariaria os seus altos mandamentos, ou teriam de ir acompanhadas às aulas, o que na prática era uma reabilitação custosa, em termos financeiros, salvo para as princesas que têm chauffeurs privados para o que for preciso.

Ora os maridos, os pais, os irmãos ou outros familiares do sexo masculino ficariam presos ao encargo de levar a mulher às aulas de condução para que depois ela soubesse conduzir e abalasse pelas estradas sauditas que, pelo que dizem, são de boa qualidade. E quem abala, pode embalar e zás.

Se ela conduzisse, como aliás já conduzira camelos, outra galinha cantaria, pois ou o marido, o pai e o irmão teriam de pagar para ter uma sombra a seguir a mulher habilitada ou ruía o mito que, coitadinhas delas, não podem conduzir porque lhes faz doenças no útero, embora seja o homem que tem testículos…

O príncipe, certamente por especial capacidade, não foi suficientemente longe no que entende por reabilitação e naquilo que designa de obrigação de “fazer a prova de que são capazes de ter sucesso e de ter uma influência positiva na sociedade”.

Fica-se a pensar no que pode uma mulher daquele país fazer para provar que tem sucesso. Dado que nunca pôde provar que podia conduzir automóveis, ao contrário da prova que fez de que podia conduzir camelos, que prova tinha em mente o príncipe, ex-ministro da Educação? Que pode fazer para demonstrar que pode ter sucesso, se não pode conduzir, sair de casa, tratar da saúde e abrir contas bancárias?

E quanto à prova da influência positiva na sociedade? Mas se a Arábia Saudita é um país feliz, exatamente porque as mulheres não se podem movimentar sem os homens a guardá-las dos outros homens, não se percebe a razão do príncipe no sentido de exigir às mulheres que provem o que lhes está vedado provar por serem inferiores aos homens dos quais devem depender.

O príncipe positivamente veio dizer que as mulheres nunca poderão provar que poderão conduzir, pois por vontade da corte real nunca as deixarão prová-lo. Só que o príncipe Abdallah mal pode imaginar, assim como os da sua estirpe, que em breve eles, ou os seus descendentes, serão conduzidos nos céus do mundo por mulheres comandantes dos aviões que cruzarão o mundo de lés-a-lés. Tal como outrora conduziam camelos. Inelutavelmente.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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