Discutir a Europa

É hora de pensar a Europa que queremos e desenhar, em conjunto, um plano longo mas determinado de acção.

Desta vez, as instituições da União Europeia (UE), ao invés de nos dizerem o caminho que devemos seguir, convidam-nos a reflectir. Primeiro com o relatório dos cinco presidentes, agora com os cinco cenários da Comissão Europeia para o futuro da UE e o seu mais recente documento de reflexão sobre o aprofundamento da União Económica e Monetária. Tudo isto num contexto em que a própria configuração política na Europa parece pender no sentido de um novo fôlego para o projecto europeu, com os desafios criados pelo “Brexit” e pela presidência de Donald Trump a unir e a catalisar as mudanças no horizonte. É hora de pensar a Europa que queremos e desenhar, em conjunto, um plano longo mas determinado de acção.

Reconhecer as falhas da actual União Económica e Monetária — e fazê-lo é, também, reconhecer os seus muitos méritos — permite-nos estabelecer um ponto de partida. Não estamos a começar do zero e a imagem de 2017 é um reflexo muito longínquo do Pacto de Estabilidade e Crescimento desenhado há 20 anos. Na verdade, a crise económica e financeira de que estamos agora a emergir fez-nos avançar decisivamente, nestes anos mais recentes, em três frentes. 

A primeira foi a área da coordenação das políticas económicas e orçamentais, com o chamado Semestre Europeu e um conjunto de iniciativas de reforço das regras e do enquadramento de supervisão multilateral. Podemos, com muito direito, focar-nos nas suas falhas de desenho e implementação mas, ainda assim, foram progressos assinaláveis no muito necessário esforço de coordenação. As regras não são, neste momento, credíveis e os resultados nos planos económico e social estão aquém do desejável. É esta a nossa base de trabalho.

A segunda frente de actuação foi a criação de mecanismos de gestão de crise, anteriormente inexistentes num quadro em que se insistia na credibilidade do não credível artigo 125 do Tratado do Funcionamento da UE, o tal que estabelecia a impossibilidade de resgates entre Estados-membros. A realidade tende sempre a impor-se e acabámos por criar, em 2012, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), no mesmo ano em que o BCE anunciou o seu programa de Outright Monetary Transactions (OMT), muito eficaz na redução dos spreads dos juros da dívida pública. No entanto, o MEE depende do Eurogrupo — i.e., dos ministros das Finanças dos países do euro, que respondem aos seus parlamentos nacionais —, sofrendo por isso de uma falha fundamental: o processo de decisão é longo, imprevisível e não reflecte, necessariamente, os interesses da área do euro no seu conjunto. Por seu turno, o programa de OMT do BCE transforma o banco central no emprestador de último recurso, não para os bancos mas para os Estados.  

Finalmente, a terceira frente foram os muitos avanços com a união bancária, com regras de supervisão e resolução comuns. Tudo feito num curtíssimo espaço de tempo. Perdeu-se o ímpeto, entretanto, e — não por acaso — muito está ainda por fazer na redução mas sobretudo na partilha de riscos. A primeira não é um substituto da segunda e a quebra da interligação entre banca e finanças públicas só será uma realidade quando estiver em funcionamento um mecanismo de segurança financeira para o Fundo Único de Resolução e um sistema europeu de seguro de depósitos.

A busca de um grande plano que procure resolver todos estes (e outros) desafios de uma só vez e de forma óptima servirá, apenas, para nos paralisar em face de tão grande desafio. E será uma estratégia usada por quem beneficia com o statu quo para garantir a inacção. Os desafios são vastos, as respostas também; pelo que podemos agir de forma faseada, passo-a-passo, mantendo o foco naquilo que são as nossas metas de longo-prazo.

No plano da acção imediata, haverá ganhos para o funcionamento da união em garantir regras económicas e orçamentais que induzam as reformas necessárias e que estimulem a criação de buffers para dias menos bons. Mas sem descurar que somos uma união e que nessa medida temos também de considerar a posição orçamental dos países do euro no seu conjunto — ou seja, não podemos continuar a ignorar a dimensão europeia.

O primeiro passo deve passar por assegurar simetria. É necessário garantir que as regras económicas e orçamentais se aplicam efectivamente a todos. Aos países com défices excessivos mas também àqueles que apresentam excedentes excessivos — a noção relevante deve ser a de desequilíbrio. Como a realidade já comprovou, não conseguimos avançar nesta área enquanto nos baseamos no aqui e no agora para decidir as regras do jogo que, inevitavelmente, já estamos a jogar. Não podendo ser árbitros e jogadores em simultâneo, devemos estabelecer critérios que nos digam quando há necessidade de intervenção — para défices e para excedentes — com base em regras claras.

O recém-criado Conselho Fiscal Europeu (CFE) poderá ter aqui um papel a desempenhar, ao identificar essas situações de desequilíbrios em que a Europa pode exigir acção nacional. O CFE não dirá como mas dirá quando; e tomará para si responsabilidades acrescidas à medida que esses desequilíbrios se agravem em resultado da eventual inacção nacional. Aqui, novamente, não pode ser o Eurogrupo, com ministros das Finanças que respondem apenas aos seus países de origem, a ter poder de decisão. O interesse comum dos países do euro tem que ser assegurado por um responsável europeu com legitimidade para tal.

Aliada a estes mecanismos, a condicionalidade é uma forma eficaz de promover as mudanças estruturais necessárias e desejáveis numa União Económica e Monetária, onde a política monetária é única e o ajustamento cambial impossível. As prioridades de política económica, tal como defendidas nas recomendações específicas por país propostas pela Comissão Europeia (cujo processo pode e deve ser melhorado), foram já, no ciclo de programação financeira da UE 2014-2020, articuladas com os fundos europeus. Mas podemos fazer mais e melhor, ajustando as taxas de comparticipação ao ciclo económico e apostando nos incentivos positivos que premeiam as melhores práticas e a efectiva implementação.

Temos também que garantir um melhor desenho de políticas porque, em última análise, o que importa são os resultados: emprego, crescimento, bem-estar partilhado. Sabemos hoje muito mais sobre os impactos das diferentes reformas estruturais, o que nos permite pensar além da habitual panaceia da desregulamentação, perceber eventuais custos de curto prazo (em particular em contextos de crise) e maximizar os benefícios de uma adequada sequenciação e agrupamento de medidas.

Regras claras, simétricas, ajustáveis e que se aplicam a todos são condições necessárias mas não suficientes. A acção no curto-prazo permite-nos ganhar tempo para as mudanças de fundo que temos, inevitavelmente, de implementar de seguida. Um Mecanismo de Estabilidade Europeu reforçado — com o alargamento das fontes de financiamento e reforço da legitimidade democrática — é um caminho que devemos considerar, atribuindo-lhe competências nas áreas da prevenção e partilha de riscos e aperfeiçoando o enquadramento de resolução de crises. A par com soluções europeias para os legados da crise, nomeadamente em termos de dívida pública e privada. Alongar-me-ei sobre estes assuntos num próximo artigo.

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