Criticar os media em vão

O jornalismo cultural tem hábitos e regras que apetece criticar. Mas porque havemos de ter sobre ele um olhar ortopédico e que o toma por aquilo que ele não é?

Na semana passada, a morte do poeta Armando Silva Carvalho coincidiu com uma jornada excursionista de jornalistas da imprensa, da rádio e da televisão, promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, à aldeia de Estevais, para apresentação de um livro sobre Trás-os-Montes, de José Rentes de Carvalho. Sabemos que foi uma campanha bem sucedida porque no dia seguinte houve abundantes notícias e reportagens sobre a aldeia de Estevais e o filho ilustre da terra. Vemo-lo numa fotografia publicada neste jornal, caminhando nas ruas da sua aldeia, seguido por uma pequena multidão de fotógrafos, cameramen e outros profissionais. Comparada com a generosidade jornalística a que esta excursão étnico-literária teve direito, a morte de um dos nossos grandes poetas contemporâneos teve uma repercussão escassa, demasiadamente escassa. Não é que a sua posteridade dependa disso. Mas devemos ver aqui o sintoma de uma situação mais geral. Esta comparação subentende uma queixa, mas devo dizer que só a formulei para dizer a seguir que é uma queixa sem razão. E baseio-me nas palavras sábias de um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, que escreveu em 1988 um artigo que se chama O grau zero dos media ou porque é que todas as queixas contra a televisão são sem objecto. São sem objecto, escreveu Enzensberger, porque consistem em criticar a televisão em função do que ela não é, como se não estivesse a cumprir a sua missão. Ora, aquilo que ela faz com grande diligência é precisamente cumprir a sua missão. Que direito temos nós de lhe atribuir uma tarefa que não está no horizonte das suas promessas? Fazer dos media o alvo de todas as críticas, a propósito de matérias das quais eles se alhearam há muito, é errar o alvo e uma perda de tempo.

Também a Feira do Livro constituiu durante anos um alvo das minhas críticas. Hoje, posso dizer que também aí não tinha razão e venho pedir desculpa. Não é que a feira tenha melhorado. Usando os critérios que me serviam para criticá-la, até piorou. Tudo o que nela era mau chegou ao estado de exasperação. Mas as coisas são mais claras do que nunca. Agora, mal me aproximo dos pavilhões oiço os altifalantes a gritarem-me aos ouvidos: “Desaparece! Se avançares terás direito a tanta hostilidade como a que ousaste em tempos manifestar contra nós”. E retrocedo. Mais uma vez, se me pusesse a criticar a Feira do Livro estaria a tomá-la por aquilo que ela não é. Os que se sentem deserdados e expulsos das feiras do livro que vão para outras paragens. Ou declarem extinto e até nefasto o próprio modelo de feira. Mas deixem-na para quem a quer e para quem ela serve. É claro que tanta indulgência e compreensão esbarra neste problema: a feira existe para ser o que é, mas também para impedir que outras coisas sejam. É como os livros e as livrarias, os jornais e os suplementos culturais. O que é estranho, tanto no jornalismo cultural excursionista e gregário - onde fica suspenso o princípio da concorrência - como no métier dos livros e dos media, é que se aliena uma boa parte da clientela que acaba por concluir, tal como eu, que até as suas queixas são sem razão porque elas pressupunham uma linguagem comum, um princípio de entendimento que na verdade não existe. Devo confessar que estas considerações não são alheias a interesses pessoais: que leitores se interessam pelos suplementos culturais que existem? Que leitores se precipitam para um romance do qual o crítico – e não estou a inventar - disse que era “sobre a condição humana”? São os mesmos que querem ler uma reportagem sobre o livro do escritor de Estevais?

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