Estagiários do Estado denunciam precariedade e querem ser integrados

O Movimento PEPAC, composto por 782 jovens inseridos no Programa de Estágios Profissionais do Estado, escreveu a sindicatos, ministros e partidos a denunciar que a Administração Pública está a usar os estágios para satisfazer necessidades permanentes

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Movimento PEPAC denuncia que estágios estão a ser usados para satisfazer necessidades permanentes Paulo Pimenta

Esta quinta-feira, um movimento constituído pelos 782 estagiários da terceira edição do Programa de Estágios Profissionais na Administração Pública Central (PEPAC) — que dá estágios de 12 meses a jovens com até 30 anos — enviou uma carta de protesto a três sindicatos (Frente Comum, Federação de Sindicatos da Administração Pública e Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado), a diversos ministros — cujos ministérios estão a usufruir destes estágios — e aos partidos políticos com assento parlamentar.

Na carta (em pdf), o grupo argumenta que a Administração Pública usa a mão-de-obra qualificada dos estagiários para suprir necessidades permanentes e queixa-se da inexistência de perspectivas de emprego, argumentando que, ao contrário do sector privado, que é obrigado a ficar com um terço dos seus estagiários, o sector público não tem de o fazer. Mas os problemas denunciados não acabam aqui.

Recentemente, os estagiários do PEPAC foram informados de que poderiam ficar fora do concurso ao Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP), visto que deste são excluídas “situações de exercício de funções que, por força de legislação específica, só são tituladas por vínculos de duração limitada” (Portaria n.º 150/2017). Só que estes estagiários dizem não ter feito trabalho de estagiários. Em vez disso, ocuparam postos de trabalho permanentes, alegam.

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Mariana está a estagiar na Direcção de Serviços de Alimentação e Veterinária da Região Norte Manuel Roberto

O PÚBLICO comprometeu-se a proteger a identidade das testemunhas, que receiam sofrer represálias por encabeçarem o movimento. Por essa razão, os nomes são fictícios, à excepção de Mariana Vieira, que quis revelar a sua identidade.

Raquel e João são porta-vozes do grupo. Raquel tem 29 anos e é licenciada em Administração. João tem 24 e é licenciado em Gestão. Ambos já terminaram o estágio no Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), na zona norte do país. Ambos chegaram lá com expectativas que saíram defraudadas.

Antes de se iniciar no PEPAC, João já trabalhava com um contrato sem termo, fora da sua área profissional. Viu no programa uma oportunidade, mas hoje arrepende-se: “Abdiquei de um trabalho que tinha, sem termo, para ir para um estágio onde não desenvolvi nenhuma competência significativa dentro da minha área profissional.”

Mariana tem 29 anos, um mestrado em Medicina Veterinária e, até ao final do mês, está a estagiar na Direcção de Serviços de Alimentação e Veterinária da Região Norte, na área de inspecção sanitária, em unidades de abate. Inscreveu-se porque estava à procura de trabalho: “A oportunidade de poder contactar com outros veterinários e outros profissionais da mesma área era uma mais-valia do programa.”

“Fazem a festa por metade do salário”

Nos últimos anos, a Administração Pública sofreu uma redução substancial dos trabalhadores e, como não houve reposição dos efectivos, “ficaram os estagiários a satisfazer as necessidades permanentes”, explicou José Abraão, presidente da Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP) ao PÚBLICO.

Durante os 12 meses, nenhum dos estagiários sentiu existirem diferenças entre si e os colegas empregados na instituição. O trabalho é o mesmo, a responsabilidade também, conta Raquel: “As tarefas eram distribuídas pelos técnicos e pelos estagiários da mesma forma. Eu estava responsável por determinados processos e, se eu faltasse, mais ninguém me podia substituir.”

Para além disso, o carácter educativo ou formativo do estágio foi inexistente, explica João. O orientador de estágio, conta Raquel, serviu somente para “assinar os processos”: “Eu recebia mais ordens directamente dos chefes, do que do meu orientador”.

Neste último aspecto, Mariana contraria os colegas. Diz que, através dos colegas de trabalho, conseguiu obter “conhecimentos técnicos e práticos”, com os quais aprendeu e progrediu.

Mas há uma conclusão comum dentro do Movimento PEPAC, avança Raquel: “Estão a utilizar os estágios para suprir as necessidades permanentes dos serviços públicos de uma forma muito mais barata. Porque um técnico superior começa com cerca de 1.200 euros de salário e um estagiário não. É 690 euros de bolsa e fazem a festa por metade.” João acrescenta: “Isto é um círculo vicioso, em que eles utilizam os estágios para suprir as mesmas necessidades e depois contratam outros.”

Ana Avoila, coordenadora da Frente Comum, diz que o Governo se “está a aproveitar dos estagiários”. “Eles não estão a estagiar para a aprender o trabalho. São trabalhadores como os outros, mas são mão-de-obra barata. A maioria deles são licenciados e, com a habilitação que têm, mereciam logo entrar logo na carreira de técnico superior.”

Vão tentar a integração

Tanto Raquel como Mariana Vieira já se candidataram ao PREVPAP, uma medida que tem como objectivo integrar nos quadros do Estado os trabalhadores com vínculos laborais precários, mas que estejam a preencher necessidades permanentes de trabalho. Podem candidatar-se as pessoas que tenham estado ao serviço entre os dias 1 de Janeiro e 4 de Maio deste ano. João conta, no entanto, que após ter questionado o Bloco de Esquerda sobre a tal alínea dúbia da Portaria n.º 150/2017, que exclui as funções exercidas em “vínculos de duração limitada”, o partido respondeu-lhe que “à partida os PEPAC estarão excluídos deste processo de integração”.

Mariana Vieira leu e releu a portaria e também ela tem dúvidas sobre a alínea. Mas diz que, se os estagiários do PEPAC forem excluídos, é “um paradoxo”. Raquel também quer acreditar que os estagiários deste programa vão ser integrados: “Eu já concorri. Os Precários do Estado aconselharam-nos a concorrer e a tentar enviar o maior número de provas em como nós ocupamos um posto de trabalho permanente.”

José Abraão, presidente da FESAP, confirmou ao PÚBLICO ter recebido a carta do movimento e esclareceu que o PREVPAP destina-se “a trabalhadores que satisfaçam necessidades permanentes de serviço” e não é suposto que os estagiários “estejam a satisfazer essas necessidades”. Mas, nos casos em que tal acontece, a análise deve ser diferente: “Havendo estagiários que durante o seu estágio tenham vindo a satisfazer necessidades permanentes, devem enviar o seu requerimento às respectivas comissões a comprovar a situação. Depois tal será avaliado.”

A coordenadora da Frente Comum faz o mesmo apelo e diz que a exclusão dos estagiários do PREVPAP foi uma má decisão do Governo: “Os estagiários não devem deixar de preencher os requerimentos e enviá-los. Eles estão a desempenhar funções permanentes, portanto faz todo o sentido estarem integrados. E os Sindicatos estão a exigir isso.”

O PÚBLICO tentou contactar o Ministério das Finanças, que tutela o INA – Direcção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Função Pública, a entidade que gere o PEPAC, mas não obteve resposta em tempo útil.

O PEPAC faz sentido?

Raquel acredita que o PEPAC representa uma tendência de precariedade que não vai desaparecer tão cedo. Para a ex-estagiária, eram necessárias mudanças: “Deviam fazer isto de cinco em cinco anos, por exemplo, e começar a ficar com uma parte dos estagiários, tal como acontece com as empresas privadas, que têm de ficar com um terço dos estagiários. Não sei porque é que o Estado não cumpre o mesmo exemplo.”

Mariana acaba por concordar, ao enunciar que “a precariedade laboral e ausência de continuidade, apesar de se constatar a necessidade de mão-de-obra” são os principais defeitos deste programa. “Há mão-de-obra qualificada e com experiência, nos estágios PEPAC”, argumenta.

Caso os estagiários tenham igualdade de classificação nos concursos de recrutamento para a Administração Pública, o Governo considera que lhes é dada preferência na ordenação final. No entanto, estes concursos abrem raramente. João diz que o último concurso que abriu no IEFP foi há mais de 10 anos: “Onde é que eu posso verificar a existência de alguma preferência se não abrem concurso?”

O futuro é uma preocupação partilhada por Raquel e João, que dizem ver as suas competências não serem valorizadas no sector privado. “Ainda há pouco tempo fui a uma entrevista e disseram-me que eu não tinha experiência. E estive um ano na Administração Pública a fazer tarefas de técnico superior, nunca de estagiário”, conta Raquel. Para João, o cenário não é muito diferente: “Nós deixamos de ser atractivos perante os restantes colegas que tem elegibilidade para estágios profissionais em empresas que realmente queiram contratar”.

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