Recursos naturais e geoestratégia

Será importante que se tenha a coragem de explicar que os “negócios ecológicos” passaram a constituir gigantescos interesses.

É bem conhecida a relação entre os recursos naturais, incluindo a energia, e o poder mundial e regional. Por exemplo, é fácil reter a imagem de um mundo ocidental industrializado, excessivamente dependente do petróleo controlado por nações instáveis do Médio Oriente. As assimetrias mundiais entre as regiões que controlam recursos energéticos e as que deles criticamente carecem continuarão, no futuro, a ser relevantes na distribuição de poder económico e político e na influência estratégica em geral. Contudo, nas próximas décadas estes padrões de consumo e de produção mudarão significativamente. Dessa perceção antecipada depende a perspicácia das atuais decisões energéticas em Portugal e na Europa, que atualmente são em parte inteligentes e em parte míopes.

A população mundial aumentará em quase 1200 milhões nos próximos 15 anos. Só esse aumento é igual a 120 vezes a população de Portugal e a quase 2,5 vezes a população de toda a União Europeia. Todavia, desse crescimento apenas 3% se registará no Ocidente. Em cada dia nascem mais de 400 mil seres humanos.

Essa nova população não representa um simples crescimento demográfico. Trata-se de um reforço populacional concentrado em países em desenvolvimento, cujas economias, em geral, crescem muito mais rapidamente que as economias ocidentais. Dentro de 40 anos, a China, a Índia, a Rússia e o Brasil possuirão uma economia conjunta igual à dos países ricos que hoje constituem o G7 (Estados Unidos, Japão, Reino Unido, Alemanha, Itália, França e Canadá). Nas próximas 3-4 décadas a classe média mundial triplicará, em larga medida nos países que hoje consideramos “em desenvolvimento”. A Europa resvalará para uma progressiva menorização mundial, apesar de, no presente, alguns políticos tão arrogantes como desconhecedores parecerem acreditar (e impor aos cidadãos) que unificar (o que é diferente de unir) o continente é a garantia do seu sucesso no mundo futuro. Dentro de 15 anos a economia chinesa será maior que a economia conjunta de todos os 27 países que formam a União Europeia (e a economia norte-americana também se terá distanciado da europeia).

As mudanças qualitativas operam-se já a múltiplos níveis. Por quase todo o mundo em desenvolvimento, a maior educação e a massiva entrada das mulheres no mercado de trabalho introduzirão mudanças estruturais. Mais de metade da população mundial já vive nos centros urbanos.

Com o desenvolvimento económico produzir-se-ão mais bens e serviços nos países em desenvolvimento, o que elevará a prosperidade local e o consumo nesses países. É inevitável o aumento do consumo energético e de matérias-primas. O mundo em desenvolvimento, que já aglutina cerca de 85% da Humanidade, irá ser ainda muito maior e possuirá uma muito melhor qualidade de vida e poder de compra e de consumo. Os transportes intensificam-se inevitavelmente. A eficiência energética nos transportes (e em todos os domínios) aumentará bastante nas próximas décadas mas, apesar disso, o consumo global de energia será incontornável, à medida que populações pobres felizmente prosperam.

Dentro de 20 anos o mundo necessitará de mais 50% de energia que agora. Nos próximos dez anos, cerca de 90% do acréscimo de procura energética nascerá nos países em desenvolvimento. Em síntese, nas próximas décadas reconfigurar-se-ão muitas das linhas de poder mundial, em torno do controle das fontes energéticas.

Quando se viaja na Índia atual é brutalmente visível a intensidade do tráfego urbano, mas nas estradas rurais a densidade de tráfego de camiões com mercadorias é também enorme. A pobreza é ainda extensa, mas tudo muda a um ritmo imparável. Este é apenas um singelo exemplo que ilustra a ascensão dos países em desenvolvimento, que partem de baixos níveis económicos mas que, a um ritmo impressionante, nos irão ultrapassar em muitos âmbitos nas próximas décadas. Entretanto, políticos europeus e portugueses que se julgam avançados mas que, na realidade, pararam no passado, debatem irrelevâncias que julgam transcendentemente importantes.

Tensões futuras convergirão sobre recursos energéticos e naturais. A Ásia Central e, em particular, a área do Mar Cáspio constituirão um foco grave destas tensões e de risco de grave conflito. Áreas que nos passam despercebidas neste jogo estratégico são já objeto de secretíssimas análises neste contexto de futuras tensões, sendo esse o caso do Ártico, por exemplo. Pontos de controlo do transporte mundial de petróleo, de matérias-primas e de bens são uma preocupação nos bastidores. Pelo Estreito de Ormuz passa hoje 16% do petróleo mundial mas dentro de 20 anos essa percentagem será de 30%. Enquanto diversos produtores de petróleo assistem ao decréscimo da sua capacidade extrativa, alguns países mantêm uma capacidade de aumentar a sua produção nas próximas décadas, como sucede com a Arábia Saudita, o Iraque e a Rússia. O Brasil tornar-se-á num grande produtor de petróleo (em especial com os vastos recursos na Bacia de Santos). Isto é, o poder produtivo de petróleo distribuir-se-á de modo diferente do de hoje. Em contraste, os produtores europeus estão já em claro declínio. A fuga aos combustíveis fósseis é muito importante, mas é necessário que se compreenda que, mesmo com um intenso esforço empenhado de todos, esse é um esforço com resultados que serão lentos.

A política externa da China é já fortemente condicionada pela necessidade de assegurar recursos energéticos e naturais no futuro e a Índia seguirá o mesmo caminho. Os recursos alimentares e de água estão a ser comprometidos, em geral mais do que se supõe, mas em alguns casos específicos menos do que parece. O caso dos recursos pesqueiros é genuinamente preocupante e grave. Nas últimas três décadas, a produção pesqueira manteve-se estável mas a maioria dos stocks de peixe encontra-se sobre-explorada ou esgotada. Por exemplo, no Mar do Norte, 93% do bacalhau capturado é apanhado antes de poder reproduzir-se. Em 1950, as pescas mundiais montavam a 19 milhões de toneladas mas, em 2006, elevavam-se já a 94 milhões de toneladas. Se pretendermos manter o atual consumo per capita de peixe no mundo, nas próximas duas décadas necessitaremos de um acréscimo de produção mundial de dezenas de milhões de toneladas, o que é absolutamente inexequível através da pesca.

Contudo, a produção de peixe através de piscicultura evoluiu muito mais do que a opinião pública parece saber. Em 1970, o peixe produzido em piscicultura representava apenas 5% do peixe produzido no mundo, mas em 2006 representava já 35%. Esta aposta é fundamental.

Será importante que se tenha a coragem de explicar que os “negócios ecológicos” passaram a constituir gigantescos interesses. A cobertura política com o dinheiro dos contribuintes nem sempre é transparente. Imensa corrupção convergirá nos negócios das energias renováveis, precisamente porque gigantescos apoios com dinheiro dos contribuintes são oferecidos para os viabilizar.

Estes são simples exemplos das dinâmicas profundas que se desenvolvem na geopolítica da energia e das matérias-primas. Num planeta em que milhares de milhões de seres humanos vão ascender na escada do consumo nas próximas décadas, o consumo de energia e de recursos naturais crescerá explosivamente e, com ele, crescerá a tensão em torno do acesso a esses recursos no mundo. Será muito difícil evitar conflitos graves, não duvidemos. E, apesar de tal não ser evidente, muito já hoje se passa nos bastidores dos poderes mundiais, na preparação para essas enormes tensões que um futuro não muito distante evidenciará.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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