O terror e o transcendental contra o Ocidente

O que leva a este ódio e à prática da barbárie contra a população civil indefesa? Esta é questão mais profunda sobre a qual é necessário reflectir e tentar encontrar respostas adequadas.

1. Londres, de novo um ataque terrorista. No centro da capital britânica, no mercado de Borough e na ponte de Londres, o sábado à noite, 3 de Junho, deveria ser um momento de lazer, diversão e prazer. Foi transformado numa noite de pânico e de terror. Uma carrinha atropelou, deliberadamente, várias pessoas que circulavam de forma pacífica e tranquila. Outras foram esfaqueadas a sangue frio aos gritos de “isto é por Alá”. É o terceiro atentado contra população indefesa num grande centro urbano no Reino Unido em 2017. Primeiro em 22/3 em Londres, na zona de Westminster; depois em 22/5, num concerto na Manchester Arena; agora em 3/6, no mercado de Borough e na ponte de Londres. Não é ainda claro se os autores mantinham ligações orgânicas ao Daesh, ou grupos radicais similares, ou simplesmente se inspiraram na ideologia islamista-jihadista e no seu apelo a actos de terror contra a população civil ocidental e outros não crentes.

2. Um acto hediondo como este não é um caso isolado. Começa a tornar-se um novo “normal” nas grandes cidades europeias. Como chegámos até aqui? O que leva a este ódio e à prática da barbárie contra a população civil indefesa que apenas queria divertir-se, passear de forma descontraída, ou se encontrava por acaso nesses locais? Esta é questão mais profunda sobre a qual é necessário reflectir e tentar encontrar respostas adequadas. Têm sido apontadas múltiplas causas para o actual terrorismo: pobreza, exclusão social, discriminação, falta de perspectivas de futuro são algumas das mais apontadas. Ao mesmo tempo, verifica-se que estes actos de violência e terror têm sido praticados largamente por indivíduos que, em termos sociológicos, podem ser considerados muçulmanos. Se as explicações anteriormente apontadas estão correctas, é necessário perceber o que explica que sentimentos de frustração, pobreza, injustiça ou discriminação, sejam canalizados para a violência e terror. Até porque os males da pobreza, injustiça ou discriminação não são um exclusivo dos muçulmanos.

3. As intervenções ocidentais nos países islâmicos (guerras do Iraque, Líbia, etc.), são uma das causas mais apontadas para o terrorismo, a par dos problemas do passado colonial. Muita coisa já foi dita e se poderia ainda dizer sobre isso. Não vou abordar o assunto sob essa perspectiva, embora a considere, sem dúvida, relevante para compreender o actual islamismo-jihadista e o uso da violência e terror indiscriminado. O que me proponho aqui fazer é centrar a análise noutro aspecto, frequentemente mal percebido e muito subestimado, da complexa engrenagem que leva ao terror. O Ocidente e o Islão, pela visão universalista que lhes está subjacente, têm, de forma enraizada, o hábito de pensar o ser humano para além da sua cultura e religião. Isso é simultaneamente fonte de grandes virtudes e grandes problemas. Na actual Europa e Ocidente secular, os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito são vistos como universais. Foram uma evolução e transformação do pensamento universalista de raiz cristã, que ocorreu a partir de finais do século XVIII. No Islão não há pensamento secular equivalente. Mas o Islão está impregnado do seu próprio pensamento universalista: todo o ser humano é, ou devia ser, muçulmano. O Islão, tal como o Cristianismo europeu no passado, é intrinsecamente proselitista, quer converter o outro.

4. Não há um Nietzsche no Islão. Ninguém proclama publicamente que “Deus está morto!”, menos ainda no meio de um aplauso generalizado. O Ocidente celebra Nietzsche, nas artes, na filosofia e no pensamento erudito. As tragédias das duas guerras mundiais e o sentimento de culpa pós-colonial descredibilizaram a trilogia da Revolução Francesa Liberdade / Igualdade / Fraternidade. Reflectia os valores absolutos e universais da modernidade secular nos seus primórdios. Cepticismo / Hedonismo / Materialismo é a trilogia europeia e ocidental da segunda metade do século XX e inícios do século XXI. Ao contrário do Ocidente, e em particular da Europa, o Islão permanece profundamente ancorado em valores religiosos transcendentais. Está bem vivo o sentimento de pertença a uma comunidade de crentes (a umma), a melhor comunidade humana, constituída por todos os muçulmanos do mundo, unida pela crença em Alá e o seu profeta Maomé. É um sentimento profundo e poderoso, que dá sentido de missão. É incutido a todas as crianças e jovens submetidos a uma educação religiosa, ou que estão expostos a um ambiente cultural muçulmano. Contrasta com cepticismo e tibieza das crenças ocidentais no transcendental, em sociedades cada vez mais envelhecidas.

5. A existência de uma civilização ateia que perdeu “a conexão com o infinito e a eternidade” é algo novo na história humana. As palavras são de Václav Havel, o ex-Presidente da República Checa, um dos intelectuais e políticos mais marcantes do pós-guerra. À primeira vista, nada teriam a ver com este assunto, até porque foram proferidas num outro contexto (o das discussões urbanísticas e de sustentabilidade ambiental). Mas têm. Nunca existiu na história humana uma civilização tão avançada tecnologicamente e com tantos bens materiais disponíveis. Mas essa transformação da Europa e Ocidente trouxe profundas consequências nas formas de vida. Predomina hoje um quadro valores hedonista e materialista, com preferência pelo curto prazo. Valoriza a felicidade terrena e o prazer material e sensorial, sem mais. As famílias numerosas como forma de transcendência e bênção divina perderam sentido. Esta mutação social e de valores, que, sob o olhar secular ocidental, é uma evolução positiva da sociedade, está a ser explorada pelos islamistas-jihadistas. Os atentados terroristas são uma manifestação extrema e violenta de uma visão do mundo que se apropria dos valores transcendentais religiosos do Islão contra o Ocidente secular. Tem com este último uma relação esquizofrénica: um dos perpetradores trazia vestida uma camisola do Arsenal, clube de futebol londrino, símbolo do Ocidente rico, hedonista e corrupto.

6. No passado, os sentimentos de injustiça, pobreza e exclusão eram um impulso para aderir às ideologias seculares ocidentais. O marxismo nas suas diferentes ramificações intelectuais e políticas teve um papel central no processo de captar esses sentimentos. Era a ideologia de protesto e contestação de muitos dos mais jovens, dentro e fora do Ocidente. Com o declínio da influência ocidental e das suas ideologias políticas seculares — em particular do marxismo —, o espaço ficou livre. Numa parte substancial, foi reconfigurado ideologicamente por grupos islamistas-jihadistas. O seu discurso tem grande ressonância nas populações oriundas de um ambiente cultural e/ou religioso muçulmano. Usa o Islão para incutir convicções profundas, poderosas e politicamente radicais. Verdades absolutas e transcendentais são transformadas em arma política, solução para os males sociais e justificação do recurso ao terror. O espírito de sacrifício de uma cultura ancorada em valores sagrados e absolutos está a ser usado contra a civilização tecnológica e secular ocidental, onde reina o efémero. Václav Havel tinha mais razões do que pensava para se preocupar com o devir do Ocidente secular.

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