Venezuela: como se deixa uma vida para trás?

Nos últimos meses, entre três a quatro mil luso-venezuelanos regressaram à Madeira. Fogem da insegurança, dos confrontos na rua e da falta de futuro de um país que já foi um Eldorado para muitos madeirenses.

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Carlos dos Santos com a mulher e os três filhos: foram difíceis, muito difíceis os primeiros tempos Gregório Cunha

“Re·fu·gi·a·do.
Adjectivo e substantivo masculino.
1. Que ou aquele que tomou refúgio, que se refugiou.
2. Que ou quem é forçado a abandonar o seu país por motivo de guerra, desastre natural, perseguição política, religiosa, étnica, etc.” 
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Como se deixa uma vida para trás? Claribel Fernandes faz uma pausa. O corpo continua ali sentado no sofá da casa que os pais compraram para a reforma, nos arredores do Funchal, mas a memória viaja pelo Atlântico e aterra ali em Maracay, no centro da Venezuela, onde, à porta da sua loja de venda e reparação de portáteis, quatro homens a rodeiam.

“Iam-me sequestrar. Sabe o que é isso? Viver com medo, todos os dias? Todas as horas do dia?” Um agente da polícia que por lá passava afugentou o gangue, que desapareceu por entre a multidão que protesta ora contra, ora a favor do governo. Foi nesse momento que Claribel, 40 anos, com um filho de oito, decidiu ir embora. Foi a terceira tentativa de sequestro que sofreu.

Como se deixa uma vida para trás? Hugo Batista responde. “Quando o que se larga já não é vida.” Chegou à Madeira há pouco mais de um mês, com as mãos cheias de nada. É um decalque do que foi a emigração portuguesa. Primeiro ia o marido a preparar caminho, depois seguia o resto da família. Hugo Batista, 50 anos, um filho de 23 e uma rapariga de 16, fez o percurso inverso.

“Vim primeiro para ‘buscar’ uma solução. Eles ficaram lá, mas vivo com receio.” Para trás ficaram 50 anos de Caracas. A mulher, os filhos a estudar e um emprego numa rede de supermercados que já não pagava salários há muito. Aguentou o quanto pode, aguardando a pacificação das ruas, até que um dia veio embora. “Não é fácil sair da nossa zona de conforto, mesmo quando temos pouco. Deixar a família e começar de novo. Do zero.”

Aterrou na Madeira, terra dos pais, na casa de um primo que o tem ajudado nestas primeiras semanas. Fez o percurso habitual de quem chega. Tratou de documentos. Foi à Segurança Social pedir ajuda. Meteu-se na fila do centro de emprego. Agora está à espera. Olhos colados na televisão, a ver a polícia carregar sobre manifestantes nas avenidas largas que reconhece pelo nome. Telefonemas todos os dias para Caracas, para saber da família. “Ali não há futuro para nós. Para mim e para os meus ‘hijos’.”

As voltas que a vida dá

Como se deixa uma vida para trás? Agora é Carlos dos Santos quem fala. Está em casa. Três assoalhadas que o pai, que “embarcou” da Madeira há 60 anos, comprou e esqueceu-se. A casa, numa das freguesias altas do Funchal, estava fechada. Sem água. Electricidade. Mobília. Foram difíceis, muito difíceis os primeiros tempos.

“Usávamos a água que passava na levada”, recorda este engenheiro mecânico de 43 anos. Fez-se à vida. Por ele. Pela mulher. Pelos três rapazes. Com a ajuda de muitos, como a do presidente da Junta de Freguesia de São Roque, que agilizou as burocracias para repor a água e a electricidade. O básico. O suficiente para recomeçar. Com o pouco dinheiro que trouxe, comprou paletes de madeira e fez camas, cadeiras, a mesa da cozinha.

Na Venezuela, trabalhava com ferro e aço em automóveis ou no porto de Caracas, aqui fez-se carpinteiro. “As medidas são as mesmas. É a mesma régua, e se é preciso faz-se”, diz.

Carlos dos Santos está cansado naquele final de tarde de quinta-feira. Cansado mas feliz. Foi o primeiro dia de trabalho. O primeiro emprego que arranjou desde que chegou à Madeira, há poucos meses. “Estou à experiência. Foi o meu primeiro dia”, acrescenta, satisfeito.

É ali, atrás do Estádio dos Barreiros, na padaria Padeiro Feliz, que se reencontrou com o passado. O avô era padeiro. O pai é padeiro. “Agora também sou. Já viu as voltas que a vida dá?”

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Carol de Abreu, psicóloga, 46 anos: “Não é fácil abdicar de uma vida inteira, não é?” Gregório Cunha

“Muitas”, diz Carol de Abreu. Aparenta ter menos dez anos do que os 46 que diz ter, ali sentada na esplanada do Jardim de Santa Luzia, no Funchal. Recebia-nos em casa, mas já não a tem. “A renda era muito alta, por isso sai hoje de lá. Vou para casa de uma amiga”, diz esta psicóloga que, tal como as outras vozes que se ouvem nesta reportagem, é filha de madeirenses que emigraram para a Venezuela nas décadas de 50 e 60 do século passado. 

Dos 500 mil portugueses e luso-venezuelanos que se estima viverem na Venezuela, cerca de 300 mil têm origem na Madeira. Mais do que a população residente no arquipélago, que não ultrapassa as 250 mil almas.

Carol de Abreu nunca conheceu outra realidade. Foi lá que se formou. Que depois mudou para a publicidade, atraída pela criatividade daquele mundo. Foi de lá que fugiu. Porquê? A luso-venezuelana regressa a um dia específico para explicar. Está numa loja. Há gritos na rua. Uma confusão. Desmaia. “Não sei se foi do stress, se foi do gás lacrimogénio. Se foram as duas coisas.” Nesse dia disse chega e quando, tempos depois, foi à Madeira de férias com os pais, vendeu o que tinha, ofereceu os livros, e já não regressou.

Não tem trabalho. Não tem casa. Tem poucas perspectivas. Mas nada se compara a poder não sentir medo. Sozinha, sem filhos e sem património, foi fácil sair. Para o resto da família é mais doloroso. “Não é fácil abdicar de uma vida inteira, não é?” Mesmo naquele “ambiente tóxico” que se vive há meses. Quando chegou, ligava uma vez por semana para o pai, de 76 anos. Agora liga todas as noites. “Já não tenho medo por mim, tenho por eles. Pela minha família que ficou.”

Num país onde a insegurança reina. Onde o confronto político termina com sangue derramado. Onde os medicamentos faltam nas farmácias e hospitais, e pessoas procuram no lixo uma forma de alimentar a família, nos últimos meses — estimativas do governo madeirense — entre três a quatro mil luso-venezuelanos regressaram à Madeira.

Deixam muito para trás. Algum património — são os que mais têm aqueles que mais resistem em sair —, mas sobretudo o coração. Nestes regressos. Nestes refugiados escritos a português com sotaque castelhano, são as crianças as que melhor se adaptam.

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Claribel, 40 anos, com um filho de oito, decidiu ir embora ao fim da terceira tentativa de sequestro Gregório Cunha

O filho de Claribel Fernandes, de oito anos, está a “adorar” a escola nova. “Ele adaptou-se melhor que eu, e quase já não fala espanhol”, diz, sorrindo, novamente com o corpo inteiro na Madeira.

Os “rapazes” de Carlos dos Santos também. O mais novo, de dois anos, nem notou a diferença. Os mais velhos, de 16 e 13, estão perfeitamente integrados. “Aqui estamos bem. A recomeçar, mas bem”, diz o engenheiro mecânico, feito carpinteiro e agora padeiro, satisfeito por ter conseguido reunir a família.

A mulher, uma descendente de emigrantes eslovacos, era engenheira de sistemas. Ainda não encontrou nada na Madeira. “Não faz mal. Vamos arranjar-nos”, diz, confiante. “A vida dá muitas voltas”, repete, como se precisasse de acreditar.

Tantas, quantas a chave da porta do quintal da casa de Claribel Fernandes. “O meu tio diz que aqui não há problema. A porta pode ficar aberta. Mas eu prefiro assim.”

Velhos hábitos.

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