“Ainda somos exóticos na Europa. Ninguém nos conhece. Como é possível?”

Portugal está a fazer o que é preciso para aproveitar a obsessão global pela gastronomia? Existe uma estratégia? Sabemos o seu peso económico? Para José Avillez, por exemplo, falta um rosto, alguém que a personifique, “tal como McNamara personifica a onda da Nazaré”.

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Portugal está na moda, toda a gente sabe. Basta abrir um site de viagens e com alguma probabilidade aparecerá um artigo sobre o país. A gastronomia está na moda, toda a gente sabe. E, segundo a Organização Mundial de Turismo, a comida é cada vez mais uma das principais razões para se viajar. Estamos a aproveitar esta atenção para promover a gastronomia portuguesa no estrangeiro? Há uma estratégia?

“Não. Não há nada concertado nem nenhum organismo mandatado”, responde Teresa Vivas, consultora da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (Ahresp). “Existem vários players, com alguns projectos que servem esse princípio. E cada organismo terá o bom senso de se concertar com parceiros para criar uma rede e de uma forma útil fazer um trabalho coeso.”

Não há números actualizados sobre o peso da gastronomia no turismo. Os últimos dados de que o Governo dispõe são de 2007 e muito mudou desde então. Mas a gastronomia é “claramente um dos eixos da nossa promoção e da informação que quem nos visita partilha sobre Portugal”, afirma a secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho. “No ano passado saíram na imprensa estrangeira cerca de 15 mil artigos sobre Portugal. Muitos deles assentavam sobre a nossa gastronomia e os nossos vinhos.”

A primeira vez que a gastronomia e vinhos foram identificados como estratégicos foi também em 2007, com o Plano Estratégico para o Turismo (Pent), adianta Ana Mendes Godinho. “Definia dez produtos em que deveríamos apostar nos dez anos seguintes: gastronomia e vinhos era um deles”; os outros incluiam o tradicional sol e mar, golfe, cultura... Também realçava que era necessária uma “promoção internacional de 4 a 6 pratos típicos, utilizando, nomeadamente, produtos de qualidade certificada”, lê-se no relatório.

Agora existe o documento Estratégia Turismo 2027, onde a gastronomia é considerada um activo estratégico, entre uma dezena. Mas especificamente só se refere a criação de Open Kitchen Labs, ou seja, “a abertura das Escolas de Hotelaria e Turismo a empresas e startups para testes de produtos e fomento da criatividade e inovação na gastronomia e restauração.”

Paralelamente, está a haver uma atenção redobrada na formação. “Temos estado a trabalhar com a Ahresp a nível de formação e capacitação de alunos e dos próprios restaurantes”, adianta a secretária de Estado ao P2. “Formar para haver ementas que mostrem os nossos produtos regionais, para haver o cruzamento entre o que se serve à mesa e o território.” O plano passou por uma revisão dos currículos, porque “as escolas estavam muito formatadas para a cozinha internacional e com défice de formação para a nossa cozinha tradicional.”

“O que nós vivemos hoje não caiu do céu. É um trabalho consolidado de pelo menos uma década”, adianta. “A estratégia é claramente usar a gastronomia como uma forma de mostrar a reinvenção do país.”

A secretária de Estado não defende a criação de organismos “só para seguir um fim”, ou seja, uma agência encarregue de concentrar e articular este trabalho de promoção internacional. “Acredito mais na organização em torno de um foco para se seguir uma estratégia comum.”

A marca Prove Portugal

Lídia Monteiro é a responsával do Departamento de Apoio à Venda (leia-se promoção) do Turismo de Portugal. Admite que não existe uma estratégia exclusiva para a gastronomia, nem tão-pouco um orçamento específico para esta área, que é vista como “uma motivação complementar a toda a experiência turística”. “Tentamos sempre incluir uma componente relacionada com a gastronomia e vinhos porque enriquece as outras iniciativas.” Nas feiras organizadas pelo Turismo de Portugal, “há sempre a presença da gastronomia”, quer através de “chefs que vão fazer degustações”, quer “apenas um apontamento, com pastéis de nata”.

A aposta promocional é feita em quatro eixos: nos produtos, “que são muito valorizados”, com o peixe e marisco à cabeça, mas também com as frutas e legumes; na confecção, “com a gastronomia tradicional e a componente da inovação; com os nossos chefs que são reconhecidos internacionalmente; e no serviço que é prestado em Portugal (temos uma forma particular de receber bem)”.

O programa Taste Portugal (Prove Portugal), criado há dez anos, ainda é “a âncora de comunicação, a forma de falar da gastronomia portuguesa no exterior”.

Agora não é mais do que uma marca, mas, quando nasceu, o Prove Portugal vinha com um programa muito específico agregado, elaborado por José Bento dos Santos, presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia (um grupo que está a tentar fundar em Lisboa o Observatório Europeu da Gastronomia). Assentava em “cinco valores” e Bento dos Santos enumera-os: “O peixe (reconhecido como o melhor do mundo); a cataplana, como símbolo da capacidade da cozinha portuguesa de produzir pratos de alta qualidade; o pastel de nata (a cozinha de sobremesas é extraordinária mas não tinha a visibilidade que merecia); o vinho do Porto, conhecido em toda a parte; e os chefs (a cozinha é representada por pessoas e alguns dos nossos chefs são reconhecidos em todo o mundo).”

Optou-se por não promover a gastronomia no seu conjunto porque, diz Bento dos Santos, “não se pode promover tudo de uma vez. Temos de escolher o que nos distingue”. Depois de delineado o programa, foram feitas acções no estrangeiro com apresentações de cozinheiros e produtos. O resultado? “Era difícil fazer melhor. [Agora] Toda a gente sabe o que é a cataplana, o pastel de nata, o peixe português... São resultados que se vão acumulando e ficando na cabeça das pessoas.”

Como não há uma avaliação quantitativa ou qualitativa do programa, será difícil tirar conclusões incontestáveis. Mas nem toda a gente vê o balanço de forma tão positiva.

Para Teresa Vivas, não faz sentido “afunilar” tanto. “Não foi errado” ter traçado essa estratégia, “foi errado ter focado na cataplana, que não era usada no nosso dia-a-dia. Foi uma batalha perdida”, com os argumentos certos mas as armas erradas. “Tentámos internacionalizar os chefs, mas nessa altura ainda não estavam suficientemente maduros, porque o conceito da gastronomia como cozinha de autor ainda estava a surgir [em Portugal]. E ainda não era consensual o que deveríamos fazer, porque estávamos numa fase de mudança.”

Também para José Avillez, chef português com duas estrelas Michelin, só há pouco tempo ficaram reunidas as condições para começarmos a conquistar esta visibilidade. “Só conseguimos promover o que existe, não podemos divulgar uma coisa que não valha por si. Entre os restaurantes que deram que falar no último ano, só existiam um ou dois há quatro anos. É preciso primeiro começar pela oferta e só depois passar para a divulgação.”

Quanto a esta, “a melhor maneira é trazer cá jornalistas, líderes de opinião – é 200% preferível a realizar acções noutros países”. Há, claro, apostas estratégicas maiores, mas que “custam muitos milhões”. Um exemplo: Nova Iorque atraiu a gala do World’s 50 Best Restaurants. “Não é por acaso que é um restaurante nova-iorquino [Eleven Madison Park] que está agora em primeiro lugar na lista.” 

Refere outro exemplo de uma campanha em que participa: a parceria entre a TAP e vários chefs portugueses. “Para nós, é um risco. Não vamos conseguir controlar as condições em que os pratos são servidos dentro dos aviões, as pessoas podem avaliar-nos com base nisso, mas aceitei juntar-me à iniciativa porque a vejo como uma causa maior, é uma estratégia fortíssima para mostrar que Portugal tem a gastronomia como uma das suas bandeiras.”

Por outro lado, diz ainda o chef do Belcanto, é preciso saber-se o que se quer comunicar. “Temos dois caminhos. O da cozinha de autor, promovendo os chefs portugueses, ou o da cozinha regional, tirando partido da diversidade das regiões.” Uma terceira via que se poderia explorar, e que é “gigantesca”, é a da relação da cozinha portuguesa com o mundo, nomeadamente com a Ásia.

Para tudo isto, poderia existir um organismo coordenador, admite, mas “não teria de ser uma coisa formal”. O mais importante, defende, é que haja um rosto, um porta-voz, alguém que personifique essa ideia, “tal como McNamara personifica a onda da Nazaré”.

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“Mais altruísmo que estratégia”

Para Teresa Vivas, estamos num momento em que faria sentido criar uma “comissão” que juntasse pessoas provenientes da “área turística, produtores, profissionais de cozinha com experiência internacional (para perceberem que linguagem devem utilizar), e comunicação". Um dos problemas, diz, é que “queremos resultados muito rápidos. O Peru está há mais de dez anos a promover a sua cozinha. Falta-nos perseverança e seguir um caminho determinado”. Outro: “Há desconhecimento do que podemos fazer com a nossa cozinha. Não nos sabemos impor. Todos os portugueses acham que temos a melhor comida do mundo, mas depois não conseguimos mostrar quão boa e variada é, tendo em conta que somos um país tão pequeno.”

Uma das estratégias de internacionalização gastronómica do Peru, por exemplo, é o apoio a restaurantes no estrangeiro (ver caixa). No caso português, “todo o apoio falha. As nossas entidades têm de perceber as dificuldades dos chefs lá fora. Devem dar ferramentas”. Nomeadamente, garantindo formas de se manterem fiéis ao receituário, “fazendo concessões por causa dos sítios onde estão, mas sem adulterar” e facilitando o acesso a produtos.

E o que dizem os chefs sobre esta questão? Vítor Sobral, que abriu já três espaços em São Paulo, no Brasil (a Tasca da Esquina, Taberna da Esquina e Padaria da Esquina) há muito que tem uma visão crítica relativamente à promoção da gastronomia portuguesa no estrangeiro. “No ano passado, a Padaria da Esquina foi considerada pela revista Veja a melhor de São Paulo, uma cidade onde existem 3200 padarias”, diz. “Não vi grande interesse dos media [nacionais] pela notícia e não vi interesse de nenhuma marca, tirando aquelas que já trabalham comigo. Eu é que tenho de andar atrás dos queijos e dos enchidos para importar.” Agora, acrescenta, o jornal Folha de São Paulo acaba de dar a mesma distinção à Padaria.

Sobral acharia normal que empresas de produtos de gastronomia portugueses o contactassem, aproveitando a visibilidade que ao longo de vários anos conquistou no Brasil e a capacidade que tem de oferecer, através dos seus restaurantes, uma montra para o que de melhor se faz em Portugal. Mas isso não acontece, lamenta.

Tal como lamenta que “um ex-ministro que dizia que a diplomacia económica era a prioridade dele” tenha ido a São Paulo e não tenha jantado na Tasca da Esquina. Por outro lado, elogia o actual cônsul português, que tem feito um esforço nesta área. O problema, segundo Sobral, é que há uma “grande inércia”, tanto da parte do Governo como dos empresários, em promover os produtos portugueses. E não seria preciso muito. “Bastaria copiar o que os outros fazem. Os italianos, por exemplo, fazem tudo para promover os seus produtos, usando precisamente os restaurantes italianos.”

No caso de Portugal, não tem dúvidas: “A política concertada de nos promovermos é deficiente. O que acontece tem mais que ver com altruísmo individual do que com estratégia.” E dá outro exemplo: o de Carlos Ferreira, proprietário do Café Ferreira, em Montreal, Canadá. “É extraordinário o que ele promove Portugal.” 

Também Nuno Mendes, que com a Taberna do Mercado, em Londres, e com os artigos que escreve no The Guardian, tem dado uma enorme visibilidade à cozinha portuguesa em Inglaterra (há uma diferença muito grande entre os que os londrinos conheciam da nossa gastronomia há poucos anos e o que conhecem hoje), afirma que tinha uma imensa dificuldade em conseguir produtos portugueses para os seus restaurantes — algo que só recentemente começou, a pouco e pouco, a conseguir ultrapassar. “Dizendo-o de forma crua, [a cadeia de restaurantes de frango assado] Nando’s é muitas vezes associada com cozinha portuguesa, isso é uma promoção muito má para a nossa tradição gastronómica tão rica. Nem sequer é uma marca portuguesa!”, indigna-se. Apesar da “nova onda de interesse pela comida portuguesa”, considera que “há ainda poucas referências, excepto alguns pratos de menus de restaurantes e o bacalhau salgado, que é apenas a ponta do icebergue”.

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Falta uma “GastroPortugal”

O que se perde se não valorizarmos este património? “Perdemos tudo”, diz Teresa Vivas. “Vamos ficando inseguros, perdemos produtos, identidade e o lugar no mundo que deveríamos ter. Ainda somos exóticos na Europa. Ninguém nos conhece. Como é possível?”

A consultora da Ahresp vê a gastronomia como um todo, que inclui o vinho, o azeite e tudo o que se coloca na mesa. “É completamente impossível pensar em separado” e os vinhos são fundamentais nesta equação.

Um dos bons exemplos apontados pelos chefs é precisamente o da promoção dos vinhos portugueses no exterior, que é feita pela ViniPortugal, associação interprofissional do sector vitivinícola. Jorge Monteiro, o presidente, explica o que ajudou à estratégia dos vinhos. “Conseguimos criar uma ideia razoavelmente transversal a todo o território, que é uma coisa que penso que na gastronomia ainda não se conseguiu.”

O vinho português partiu também de algumas dificuldades: uma enorme variedade de castas, com nomes estranhos, muito mais blends do que monovarietais num mundo que reconhece sobretudo castas internacionais como o Pinot Noir ou o Chardonnay. Mas nos últimos anos foi possível transformar as fraquezas em forças. “Assumimos claramente a questão das castas autóctones, variedade de climas e solos, e ainda os blends”, resume Jorge Monteiro. Há outras diferenças importantes: “O vinho é um produto, a gastronomia é sobretudo um serviço.”

Sublinhando que não é um especialista em temas gastronómicos, Jorge Monteiro deixa, no entanto, algumas questões: “Qual é o elemento diferenciador na nossa gastronomia? Falta aqui um conceito claro. É o peixe? E será que o servimos bem em todos os restaurantes? Ou são as migas? O cabrito? Há uma parte da nossa gastronomia que é difícil de exportar, não tem a facilidade de uma pizza, por exemplo.” E, no final, lança uma ideia: “Será possível transformar alguns dos nossos pratos regionais mais pesados em petiscos mais pequenos? A ideia de petisco é muito mais exportável.”

Há uma dupla condição que é preciso ter em conta: a gastronomia pode ser divulgada no estrangeiro para ser comida em Portugal, pelos turistas, mas pode também servir de veículo à exportação de produtos portugueses a ela associados (como o exemplo que Vítor Sobral dá de Itália).

Miguel Poiares Maduro, que foi ministro do Desenvolvimento Regional (entre 2013 e 2015) no Governo de Pedro Passos Coelho, defende a necessidade de se criar uma ligação mais profunda entre os agentes da “fileira da gastronomia” — e aqui entram não só restaurantes e chefs mas também produtores e até designers, ceramistas, cientistas, etc. “Falta uma estratégia integrada”, afirma. “Há um somatório de coisas que podem parecer pequenas mas que juntas ganhariam uma massa crítica que pode ser muito importante.”

Durante a sua passagem pelo Governo teve experiências nesta área que lhe permitiram chegar a algumas conclusões: “Levar um chef português para um evento no estrangeiro só vale a pena se as pessoas convidadas a estar presentes forem opinion makers na área da gastronomia. Se não, é uma coisa que morre ali.”

E em muitos casos a mensagem não chegava a esses opinion makers, porque “não temos uma estrutura de apoio preparada para isso”. Em duas tentativas frustradas em que esteve envolvido, o que aconteceu foi que “as autoridades portuguesas com presença nesses países não conseguiram os contactos certos, traziam pessoas da elite local mas não as do mundo da gastronomia”.

Daí que concorde com Avillez quanto à ideia de que o melhor será trazer a Portugal pessoas que possam ser influentes nessa área, aproveitando para mostrar restaurantes, hotéis, mas também produtos e produtores. Defende ainda que tem de haver um grupo interministerial (que chegou a criar quando esteve no Governo) para gerir esta área. “Não acho que se deva criar outra organização, mas é essencial haver uma liderança clara.”

A rede

E qual é, afinal, a estrutura responsável pela promoção da gastronomia? Em primeiro lugar, o Turismo de Portugal, ligado à Ahresp e às Confrarias, explica a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) em resposta a perguntas enviadas por email pelo P2.

Neste quadro, a AICEP surge como parceiro, sendo a sua acção principal a da “promoção dos produtos agro-alimentares nacionais junto dos actuais e potenciais novos mercados” tendo como público-alvo “importadores, cadeias de supermercados, retalhistas e público em geral”. A exportação de produtos agro-alimentares e bebidas tem vindo a crescer a um ritmo médio anual de 5,4% (entre 2012 e 2016) e o universo de empresas exportadoras também está a crescer, refere a Agência.

As acções da AICEP podem decorrer no estrangeiro, por exemplo, em grandes feiras internacionais, ou podem passar pela organização de visitas de “importadores, jornalistas, sommeliers” a Portugal. Quanto à articulação com o Turismo, “é feita numa estreita relação sempre que as acções assim o justifiquem”.

Um dos exemplos mais recentes de cooperação entre a AICEP e a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, o Turismo e a Ahresp (que tem aqui o papel central) é um protocolo, a assinar em breve, para, com o apoio de fundos comunitários, promover a gastronomia portuguesa através de uma rede de restaurantes em diversos países. Os restaurantes poderão candidatar-se para serem certificados como estabelecimentos que usam receitas e produtos nacionais, ganhando assim um selo de reconhecimento oficial como “restaurante português”.

Outra das acções concertadas decorreu há uma semana, a 28 de Maio, no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, para assinalar o Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, instituído em 2016. A  Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas, a Ahresp e o Turismo de Portugal juntaram-se à ANA Aeroportos de Portugal e o espaço exterior do aeroporto foi ocupado com 40 expositores com degustação e venda de produtos nacionais, apresentando a gastronomia portuguesa a todos os que chegavam do estrangeiro (houve também a cerimónia de atribuição de insígnias da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas e uma abertura a fogo de um Porto Vintage).

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Mais do que pratos bonitinhos

“Há muita coisa a acontecer, mas ainda está tudo por acontecer”, comenta Ana Músico, da agência Amouse Bouche, que promove o evento Sangue na Guelra, que junta chefs e massa crítica e que vai na sua quinta edição. “A nível oficial, não há uma estratégia. Este ano foi a primeira vez que houve uma 'comitiva' na atribuição das estrelas Michelin, em Espanha. Nunca tinha estado um membro do Turismo de Portugal ou do Governo, nem nunca o Turismo de Portugal organizou uma comitiva de jornalistas.”

O momento de promover a cozinha portuguesa não poderia ser melhor. “Temos imensos cozinheiros cheios de potencial. Estão todos a pesquisar e a olhar para a gastronomia portuguesa muito para além [das cozinhas], com implicações na economia social, local, e a nível da nossa identidade cultural: a gastronomia traz muitas coisas, e estamos todos a descobrir isso.” A comunicação tem de reflectir essa complexidade, e “é muito mais do que mostrar uns pratinhos bonitinhos e exóticos.”

O simpósio do Sangue na Guelra andou este ano à volta da pergunta: “Cozinha portuguesa, e agora?” Juntou 20 cozinheiros em grupos de trabalho, chamou jornalistas estrangeiros, pessoas com influência internacional, como o jornalista, escritor e curador de eventos gastronómicos Andrea Petrini, e Anna Morelli, directora da revista Cook_Inc. Criou um “Manifesto para o Futuro da Cozinha Portuguesa” onde, entre outras coisas, se reclama que “a nossa identidade gastronómica é a nossa origem, o que nos funda como cozinheiros(as)”. No último dos seus 11 pontos lê-se: “Desafiamos todos os cozinheiros, consumidores, produtores, fornecedores, empresários do sector, jornalistas, investigadores, críticos, artistas, pensadores, a assumirem-se como agentes de mudança e de promoção da cozinha portuguesa!” O manifesto serve para “preservar o que temos, porque este é o momento de tomarmos as melhores decisões”, afirma Ana Músico ao P2.

“Há um movimento e todos querem participar nisto”, adianta. Mas, a nível oficial, “falta estratégia. Falta alguém sentar-se à mesa e dizer: 'Quem são as pessoas que estão a fazer coisas?' Há todo um know how, toda uma rede de contactos, um património, que tem de ser aproveitado... O que podemos fazer em conjunto? Podemos ir mais longe. Tudo isto é uma coisa que se contamina e se alimenta em todas as direcções e que tem retorno. É um trabalho de filigrana.”

A Amuse Bouche quer criar uma plataforma para os cozinheiros e uma base de dados de pequenos produtores (“porque eles é que sabem as dificuldades” que existem no terreno), e continuar a envolver os cozinheiros em causas, como a sustentabilidade ou os impactos na economia local — “o activismo vai ser o tema do próximo simpósio”. Este é o tipo de trabalho que entidades como o Turismo de Portugal deveriam aproveitar, defende. Mas, aos cozinheiros, um conselho também: “Estudem. Só assim se cria um tecido com espessura.”

Acabar com o complexo de inferioridade

O italiano Andrea Petrini (a revista Time colocou-o no primeiro lugar entre as 13 personalidades mais influentes no mundo da gastronomia) também não vê que haja um plano, mas isso não tem de ser necessariamente mau: “Neste momento, a falta de estratégia significa que Portugal é ainda um território virgem. Tem ainda uns segredos bem guardados. Mas toda a gente anda a querer ir para Lisboa, que se tornou a última cidade europeia a ser descoberta”, afirma por telefone. “Já se sabe que o peixe e marisco português é fantástico, têm conservas que já encontramos na Alemanha, por exemplo, o queijo começa a ser descoberto. E isto pelas pessoas que estão realmente interessadas em comida.”

Quando lhe perguntamos se devemos seguir o exemplo de Espanha, que fez do Madrid Fusión um dos maiores acontecimentos gastronómicos do mundo, a resposta é rápida: “O Madrid Fusión é exactamente aquilo que vocês não devem fazer! Quem precisa de um festival igual a todos os outros, com chefs a fazer figuras tristes, a darem showcases no palco, como se fazia há 25 anos? Devem parar de vos comparar aos espanhóis. Não faz sentido pedir ajuda ao Governo para uma promoção que imita os espanhóis ou os suecos. Vocês não precisam disso; vocês precisam de fazer as vossas próprias coisas.”

Nesse caso, por onde ir? Petrini aponta para exemplos como o simpósio do Sangue na Guelra, no qual participou. E defende um apoio claríssimo aos cozinheiros, porque “eles é que são os embaixadores”. “Têm de apoiar a nova cozinha portuguesa com personalidade. Devem acarinhar os vossos chefs, apoiar o que estão a fazer o Henrique [Sá Pessoa], o [José] Avillez, o Alexandre Silva… Não é preciso haver 29 chefs, apenas uma pequena liderança de quatro ou cinco. E isso vocês já têm.” E há que olhar também para quem está fora, “como o Nuno Mendes ou o Leonardo Pereira, que é um chef de qualidade mundial. Nos círculos de foodies, está tudo à espera que o Leonardo abra o seu restaurante.”

Andrea Petrini defende que este apoio aos chefs deve passar por “promover, falar sobre eles, fazê-los viajar pelo estrangeiro, financiar eventos inteligentes  (e não ir a bordo dos comboios errados), ajudar editores independentes a fazer bons livros sobre comida e cozinheiros…”

Resumindo: “Não adianta o Governo anunciar que vai trazer uns jornalistas para descobrir o quão fantástica é Lisboa. Eles vêm se tiverem coisas importantes a descobrir, como o Ramiro [cervejaria]. Quanto mais restaurantes interessantes e originais tiverem, mais conhecida será a vossa gastronomia no mundo. Não vão ter com o vosso Governo a pedir um espaço para um evento sobre marcas internacionais. Não voltem a desenvolver o vosso complexo de inferioridade, pensando que têm de fazer igual à Espanha ou à Suécia. Podemos ter alguma coisa nova, por favor?”

Este artigo é o tema de capa do P2, caderno de domingo do PÚBLICO

https://stream.publico.pt/epaper/P2-Lisboa-20170604/

 

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