PJ abre mais de dez inquéritos por semana por pornografia infantil na Net

Em 2016, a Polícia Judiciária abriu mais de 500 inquéritos por pornografia infantil. Casos aumentaram 50 vezes nos últimos cinco anos.

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O motivo principal para este aumento “foi a massificação da Internet" AFP/JOCHEN LUEBKE

Os crimes de pornografia infantil na Internet, em forte crescimento, começam em muitos casos com conversas de aliciamento para fins sexuais. As pessoas mais vulneráveis a este aliciamento — grooming, como é conhecido — são as crianças e jovens que têm “o diário da sua vida” exposto no Facebook e noutras redes sociais.

Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e psicólogo clínico, descreve um quadro frequente: as crianças ou adolescentes, nas redes sociais ou noutros meios de comunicação online como o Messenger e o WhatsApp, julgam que estão a falar com jovens da mesma idade do que eles. Na realidade, têm adultos do outro lado da linha. “Pode ser um homem de 50 anos a fazer-se passar por um adolescente de 15 anos e a seduzir uma jovem dessa idade.”

“As situações que envolvem a exposição de crianças, a divulgação de imagens, a realização de vídeos publicitados na Internet estão, de facto, a aumentar”, confirma Carlos Cabreiro, director da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica da Polícia Judiciária (PJ).

Em 2012, a PJ abriu 12 inquéritos por suspeita do crime de pornografia infantil. Dois anos depois, esse número aumentou para 245. E, em 2016, atingiu os 591. Ou seja: mais de um por dia, mais de 11 por semana. Nestes seis anos, a PJ somou 1383, aos quais se juntam 181 até meados de Maio deste ano.

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Aumentar

O motivo principal para este aumento “foi a massificação da Internet, que levou a que abusadores, indivíduos que se dedicassem à colecção, à posse deste tipo de material, pudessem também ali potenciar a sua actividade criminosa”, diz Carlos Cabreiro. Os autores destes crimes “usam naturalmente o argumento da anonimização e a percepção de que, num primeiro momento, não estão a ser vistos por ninguém”, diz.

O crescimento do fenómeno “terá em parte a ver com essa sensação de impunidade que pode existir quando estamos atrás de um computador”. Essa ocultação é um dos motivos para a maior frequência da prática destes crimes, salienta. “Por outro lado, a troca, a divulgação, a existência de fóruns específicos para o efeito tem fomentado a actividade criminosa nesta área.”

Dificuldades na investigação

Também para Pedro Verdelho, coordenador do gabinete de cibercrime da Procuradoria-Geral da República, “a anonimização tem o efeito perverso de criar sentimentos de impunidade”. O magistrado reconhece, em respostas enviadas ao PÚBLICO por email, que “a natureza deste tipo de crimes e do ambiente em que se desenrola cria dificuldades à investigação”.

Dos 1350 inquéritos abertos entre Outubro de 2013 e Junho de 2016 no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), “apenas 601 foram remetidos para as comarcas”, lê-se no Relatório de Actividade do Gabinete de Cibercrime do Ministério Público relativo a 2016. Isso acontece quando foi possível apurar, nas primeiras diligências, “eventual identidade e morada” do suspeito.

Contudo, diz Pedro Verdelho, “por vezes é impossível ter sucesso na identificação de suspeitos, por exemplo se estes utilizarem servidores proxy, que em termos práticos tornam as suas comunicações quase anónimas”. O mesmo acontece, acrescenta, com “suspeitos que utilizem pontos de acesso públicos à Internet, como por exemplo juntas de freguesia, bibliotecas públicas ou hotéis.”

O sucesso das investigações também pode ser condicionado pela dificuldade de obter resultados positivos pelas vias da cooperação judiciária tradicional, acrescenta Pedro Verdelho. “É que, apesar de na Internet não haver fronteiras, a investigação criminal continua a tê-las: em geral, as autoridades portuguesas não podem sair das suas fronteiras nem do seu território para investigar em territórios de outros Estados. Isso violaria a soberania nacional desses Estados.”

Casos arquivados

Muitos inquéritos são arquivados nesses casos, ou ainda quando os operadores de comunicações já não detêm informação sobre o IP, identificação do computador a partir do qual foi feito o carregamento das imagens ou vídeos, refere ainda o documento publicado em Abril de 2017. De acordo com o mesmo relatório, no DCIAP foram arquivados 634 inquéritos. Até ao fim de 2016, foram proferidas 28 acusações.

“Cada caso é um caso e em termos de medida concreta da pena é diferente, por exemplo, ter divulgado uma ou duas fotografias ou, pelo contrário, como aconteceu num caso, ter 11 discos externos cheios de material”, responde Pedro Verdelho relativamente às sentenças.

No processo de aliciamento no contacto na Internet, os “predadores sexuais”, como lhes chama Daniel Cotrim, ficam a saber mais do que o nome da criança, a idade, a escola ou onde vive. “Vão percebendo as fragilidades das vítimas.” Vão conhecendo hábitos, horários e rotinas da criança, e as horas a que estão isoladas no quarto ou sozinhas em casa. A confiança e depois a sedução são assim facilitadas para proporcionar aos suspeitos destes crimes o que procuram: fotografias ou vídeos da criança nua ou em comportamentos sexualizados que depois expõem em sites de pornografia.

“Muitos destes agressores recorrem a elogios excessivos às crianças e aos jovens e manipulam-nos", diz Daniel Cotrim. Enviam às vítimas fotografias normalmente falsas fazendo-lhes crer que são fotos pessoais, que essa partilha é normal, que estes comportamentos sexualizados estão perfeitamente adequados para aquele meio de comunicação — a Internet, a rede social — e que tudo não passa de “um jogo, uma brincadeira”.

Sedução e partilha

Dependendo da idade, ou quando a criança ou o jovem começa a manifestar desconfiança ou desinteresse, recorrem a ameaças ou fazem promessas extravagantes, de lhes oferecer bens materiais como o par de ténis de uma boa marca ou o telemóvel de alta gama que eles sempre quiseram ter.

Na semana passada, a Polícia Judiciária deteve em Aveiro um homem fortemente indiciado pela prática de crimes de pornografia e aliciamento de crianças e jovens e de coacção agravada. O homem conheceu uma adolescente de 13 anos através do Facebook, usando um perfil fictício, escreve a PJ num dos seus comunicados recentes. Nesse perfil, “o suspeito mencionava uma idade próxima da dela para desse modo conquistar a sua confiança e facilitar o processo de sedução”.

Na fase seguinte, “trocaram várias mensagens, no âmbito das quais ele a aliciou diversas vezes para encontros visando práticas sexuais, chegando mesmo a propor oferecer-lhe um telemóvel, smartphone topo de gama, e dinheiro”. A jovem recusou, e ele ameaçou divulgar na Internet as fotografias dela nua que já tinha em sua posse.

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