O que fazem táxis fora de serviço no meio de uma multidão que tenta chegar a casa?

Os efeitos de tratar a mobilidade de uma multidão de 57 mil pessoas com os recursos de um dia normal.

Passam 15 minutos das duas da manhã. Alcântara-Mar, em Lisboa, está mais animada do que é normal – mesmo para uma sexta-feira à noite. Há gente a chegar a pé de Ocidente, lá dos lados de Belém, pela beira-rio. Não correm nem cambaleiam: andam. Trazem bandanas. Vêm do concerto dos Guns n’ Roses. São cinco quilómetros e meio desde o Passeio Marítimo de Algés, mais de uma hora de caminho. Levam nas pernas quase três horas de canções e sabe-se lá quantas mais de vai-e-vem no recinto e de estrada para lá chegar. Ainda lhes resta energia? Talvez não, mas sobram poucas alternativas. Querem chegar a casa. Vão como podem.

Atravessando a linha de comboio, o cenário mantém-se. A curva que liga a Avenida da Índia à 24 de Julho revela mais um grupo, outro e outro. Na paragem do autocarro, direcção Cais do Sodré, as pessoas vão chegando e desistindo. Também põem os pés ao caminho. Há mais de 11 minutos que faltam 11 minutos para o 201, que parte de Linda-a-Velha e passa em Algés. É de lá que vem esta espera. O trânsito e a enorme afluência aos transportes públicos já tinham dificultado a vida de quem, ao final da tarde, tentava chegar a tempo de ver Axl, Slash e companhia desde o primeiro minuto. Agora, e embora sem trânsito, a mesma dificuldade.

O concerto terminou antes da meia-noite. Mas 57 mil pessoas não se deslocam facilmente. Quase três horas depois, ainda se fazem sentir os efeitos de tratar a mobilidade de uma multidão deste tamanho com os recursos de um dia normal. Olha-se em volta e não há um táxi livre: passa um, dois, três, vinte, trinta – todos ocupados, todos vindos dos lados de Algés. Os preços da Uber estão insuflados pela procura; os carros desaparecem em meros segundos no mapa da aplicação. Quando finalmente chega o 201, vem tão cheio que um dos ocupantes trepa o corrimão dos degraus de saída para que uma única pessoa possa entrar por ali.

O autocarro range, o motor esforça-se. Um casal de turistas – de caveiras e pistolas ao peito – pergunta a um grupo de espanhóis num inglês de sotaque eslavo onde fica a estação central de Lisboa. A resposta sai na língua materna: o Cais do Sodré é bastante central. A mulher insiste. Segunda resposta: mais duas paragens. Ninguém se entende. Todos concordam, no entanto, que a viagem tem de terminar rapidamente. Já não se aguentam os joelhos alheios à ilharga. No Cais do Sodré, o mesmo espanhol que há pouco parecia um profundo conhecedor da capital portuguesa desata aos berros porque o motorista não parou à porta do metro. Não está tão seguro de si. Está cansado e incapaz de aplacar mais uma (aparente) contrariedade.

Próxima etapa: os autocarros que saem do Cais do Sodré para Norte e para Oriente. Estão atrasados e a abarrotar. As paragens continuam, ainda assim, cheias de gente. O 208 não consegue sair. Uma mulher com uma criança ao colo põe-se à frente do autocarro. Diz que está ali desde a uma da manhã, exige entrar. O motorista fechou a porta. Não cabe mais ninguém. Um homem apoia o protesto: “Não pode fazer isto! Não pode fazer isto!” Mais à frente, o 210 começa a andar com as pessoas coladas aos vidros. O autocarro vai como que inclinado para a frente.

Segue-se a pé. Na Praça Duque da Terceira, não há táxis. Já se adivinhava. Na Rua de São Paulo, também não. Corpo Santo, Rua do Arsenal, Praça do Município – nada. Mas eis um padrão: todos os táxis ocupados seguem em direcção ao Terreiro do Paço; em sentido inverso, os carros de praça desocupados passam de sinal luminoso desligado, fora de serviço. Um, dois, três, uma dúzia. Curioso. Na Rua Áurea, uma rapariga que apanha no semáforo um destes taxistas que não respondem à procura com oferta – e trava-se de razões. Na Rua da Prata, duas mulheres fazem sinal a outro, que desvia o automóvel para a faixa mais afastada.

São quase três da manhã. Na Praça da Figueira desaguam os primeiros táxis livres que vejo desde Alcântara, há três quartos de hora. Parece a chegada da infantaria: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Descem do Martim Moniz. Para mim já não vale a pena, mas certamente que aquela família que percorreu toda a Rua do Arsenal a olhar para trás vai gostar de os ver. Subindo a Rua da Palma, ainda se encontram caminhantes a gastar as solas que lhes sobraram de uma noite com os Guns n’ Roses. Uma romaria ao contrário. O 208 não passou. Passará? Tanto tempo. Talvez nunca tenha chegado a sair. Que embrulhada esta cidade-paraíso.

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