Foi você que falou do Verão do Amor?

1967 foi musicalmente um ano extraordinário, recheado de discos históricos e obras-primas intemporais. Representou, de certa forma, o zénite da revolução pop enquanto sonhada alavanca para transformar o mundo. Mas que podia ela, tão ingénua, perante toda a violência em redor?

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Enquanto o Verão do Amor difundia a imagem idílica de uma nova sociedade, a guerra matava no Vietname e, nos EUA, confronta vam-se manifestantes e forças da autoridade REUTERS/Marc Riboud/Handout via Sony World Photography Awards

Os Beatles a lançarem Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e a trazerem à vista de todos um novo mundo de despertares artísticos e acordares espirituais, uma libertação das amarras do velho mundo dos pais e das velhas formas de viver conservadoras, castradoras da afirmação individual, hipócritas na moralidade de pacotilha e no medo ao diferente. “A imaginação ao poder!”, subentendia-se um ano antes de a expressão, entre gás lacrimogéneo, pedradas, manifestações e barricadas, se tornar palavra de ordem nas ruas da Paris de Maio. No que à música diz respeito, é impossível discordar. Em 1967, a imaginação tomou mesmo o poder. Mas o mundo não era exactamente o que Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band pintava, nem estava perto de se tornar algo assim.

Retrospectivamente, foi um ano de muitos acontecimentos decisivos na música. A lista de obras-primas e de sementes de futuro é particularmente extensa. Estrearam-se os The Doors e os Love assinaram a sua obra-prima, Forever Changes. Os Pink Floyd, liderados por Syd Barrett, estreavam-se com singles (Arnold Layne e See Emily play) e um álbum que definiu o psicadelismo mais aventureiro (The Pipper at the Gates of Dawn). Enquanto isso, os Kinks revelavam-se como cronistas atentos do quotidiano britânico, em modo pop rock (descubra-se a pérola Something Else). Em Nova Iorque, os Velvet Underground de Lou Reed e John Cale expunham sem pudor o reverso da treta flower-powerVelvet Underground & Nico anuncia-se com capa de Andy Warhol. Em Londres, um guitarrista americano deixava Pete Townshend dos The Who, e Eric Clapton, dos Cream, autores no mesmo ano da uma obra seminal, Disreali Gears, a pensar que melhor seria mudarem de profissão (como competir com o que Jimi Hendrix fazia em Are You Experienced?).

As erupções de criatividade multiplicaram-se nas mais diversas áreas. Os Electric Prunes elevavam o garage-rock à estratosfera com I had too much to dream (last night), single da estreia homónima, e Morton Subotnick acrescentava a futurista música electrónica à banda-sonora da época com Silver Apples of the Moon. Os Byrds, com Younger Than Yesterday, e os Buffalo Springfield, com Again, transformavam o folk-rock numa outra coisa. Os Sly & The Family Stone fundiam a soul com rock’n’roll e contracultura (Whole New Thing era o título do álbum e era mesmo verdade) e os Jefferson Airplane, através de Surrealistic Pillow, tornavam global, via White rabbit e Somebody to love, o rock psicadélico que fermentava em São Francisco - os Country Joe & The Fish faziam o mesmo com Electric Music For The Mind and Body. No meio disto tudo, um canadiano outrora escritor estreava-se com Songs of Leonard Cohen e um americano do deserto, Captain Beefheart, iniciava a sua viagem inimitável com Safe as Milk.

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Os Doors (em cima) e Jimi Hendrix (abaixo) estrearam-se em álbum num ano histórico, cenário para diversas obras-primas que espelhavam a extraordinária evolução da música pop desde o início da década
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No Brasil, Gilberto Gil chamava a si os Mutantes para actuarem em Domingo no Parque e Caetano Veloso recrutava os rockers argentinos Beat Boys para o acompanhar – o tropicalismo começava a revelar-se. E em Portugal, no ano das terríveis cheias na zona de Lisboa que mataram mais de 400 pessoas, no ano do assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, da responsabilidade de militantes anti-fascistas e que tanto envergonhou o regime, nesse ano em que Amália é rainha de vendas com o EP Júlia Florista, os Quarteto 1111 arranjam espaço para inventar o pop rock moderno português com A lenda d’el Rei D. Sebastião e o Duo Ouro Negro cruzava tradição angolana e modernidade no álbum Mulowa Afrika.

1967 é o ano em que, pela primeira vez, o mundo inteiro se uniu ao mesmo tempo, com a inédita transmissão por satélite do programa Our World, protagonizado por Maria Callas, por Pablo Picasso e, principalmente, pelos Beatles, que ali estrearam All you need is love. Ano luminoso, ano abençoado. Ah, o Verão do Amor, exportado desde São Francisco para o mundo inteiro. Ah, a swinging London de tanta liberdade e tantas delícias, da moda preservada como epítome do cool.

1967. O ano da Guerra dos Seis Dias entre Israel e a Jordânia, Egipto e Síria. O ano em que prosseguia a guerra do Ultramar nas antigas colónias portuguesas, em que a guerra no Vietname motivava gigantescos protestos nos Estados Unidos, em que a violência policial e as tensões raciais conduziam a violentos motins em Detroit e noutras cidades americanas – Soul man, inscreviam comerciantes nas suas portas e janelas, utilizando o título do êxito soul que Isaac Hayes compôs para Sam & Dave como protecção para possíveis saques dos manifestantes.

Timothy Leary, psicólogo tornado guru do LSD que cunhou a famosa expressão “turn on, tune in, drop out”, declarava que a chegada de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band era como ouvir música que “dava voz ao sentimento de que as velhas formas de estar e de agir tinham acabado”. Certo, mas em Inglaterra discutia-se acaloradamente os escândalos dos Rolling Stones. Havia a prisão de Mick Jagger e Keith Richards por posse de droga, mas também a ignomínia de, no programa de variedades Sunday Night at the London Palladium, emitido pela ITV, a banda não ter cumprimentado o público quando passavam os créditos finais, como exigia o protocolo e as boas maneiras. E a BBC, rádio pública do país que só nesse ano de 1967, a 4 de Julho, deixou de punir a homossexualidade como crime, censurava A day in the life e Lucy in the sky with diamonds por obscenidade, no caso da primeira (I’d love to turn you on, dizia um verso), e incitamento ao consumo de drogas, no caso da segunda.

No bairro de Haight-Ashbury, em São Francisco, chegavam, vindos de todos os Estados Unidos e do estrangeiro, 100 mil pessoas para testemunhar os ares de liberdade e a nova forma de encarar o mundo que o mudaria irremediavelmente. A maioria, assinale-se, eram adolescentes fugidos de casa nas férias escolares. E a utopia, na verdade, não era assim tão bonita de ver. George Harrison passou por lá, atraído pelos relatos, e não sentiu grande iluminação: “Não havia nada de verdadeiramente criativo ou um acordar espiritual. Eram miúdos borbulhentos que tinham desistido da escola a tomarem drogas”, comentou. Em Junho, Verão bem vivo, aconteceu o Monterey Pop Festival, primeiro festival rock tal como os entendemos hoje, representação idílica e inspirada da comunidade musical emergente e palco que revelou Jimi Hendrix aos seus compatriotas, que fez de Janis Joplin uma estrela, que fez da lenda soul Otis Redding, que morreria num desastre de aviação a 10 de Dezembro, também um ícone da geração flower power. No Outono, em Outubro, tudo terminara. Os pioneiros da contracultura de São Francisco estavam fartos e percorreram as ruas num simbólico “enterro do hippie”.

O extraordinário ano musical de 1967 resulta da erupção de ideias que fervilhavam em volta de uma linguagem nova, a da revolução pop e rock com tiro de partida dada poucos anos pelos Beatles. Resulta da apropriação de novas possibilidades tecnológicas, nos estúdios, nos instrumentos, pela geração que a fazia. E resulta da reacção, ora feroz, ora apontando com fervorosa ingenuidade a possibilidade de uma nova sociedade, a um mundo violento e que reagia com tenacidade à mudança. 1967 foi, de certa forma, o zénite criativo, musicalmente falando, desse confronto. Bob Dylan, que via mais longe, abandonou a linha da frente, recuando para as raízes sólidas da tradição folk e country em John Wesley Harding. Arthur Lee, que via tudo muito claramente, cantava em Red Telephone aquilo que estava realmente perante si: “Sitting on a hillside, watching all the people die / I feel much better on the other side / I’ll bump a ride”.

1967, recorde-se, foi também o ano em que Arthur Penn pôs Bonnie & Clyde no corpo de Warren Beatty e Faye Dunaway, transformando-os em assassinos glamorosos, em rebeldes sem causa (alerta de spoiler: morrem ambos no fim). Foi o ano em que Jacques Tati nos mostrou realmente, mais claramente que qualquer outro, o que viríamos a ser. Estava tudo em Playtime, na nossa solidão na cidade tão povoada, no absurdo da devoção acrítica às magias da tecnologia, na sofisticação deslumbrante que, na verdade, esconde uma existência asséptica. A geração de 1967 transformou os costumes, as artes e ganhou vantagem perante o velho conservadorismo. Mas, vendo bem as coisas, é Playtime que está entre nós. Melhor: Playtime somos nós.

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