Sobre o alojamento local da inveja dos vizinhos

Deixar para determinação de uma assembleia de condóminos a decisão sobre o uso que se pode ou não fazer de um apartamento, privado, é manifestamente demais e põe em risco o direito de propriedade.

O anunciado projecto de lei da autoria de dois deputados do PS, que faz depender de decisão de uma assembleia de condóminos a possibilidade de ser usada uma habitação para alojamento temporário, revela bem várias das idiossincrasias do nosso legislador. Não sei se algum dos deputados em causa alguma vez participou numa assembleia de condóminos ou foi até administrador de um condomínio. Pela esperança infinda que depositam naquela brava instituição, permito-me duvidar. Afinal, é fácil alterar a lei, sem saber muito bem o que isso significa, quanto custa a todos ou que efeitos perversos e imprevistos poderão advir de uma “simples” alteração como esta.

Até é de admitir que se possa num condomínio decidir, mas apenas no seu título constitutivo, ou seja, no momento inicial de constituição da propriedade horizontal, que nenhuma das suas fracções tenha como uso o comércio, o arrendamento, o alojamento temporário, o ensino, mesmo que apenas tentado, de Schopenhauer ou a prática audível do sadomasoquismo ou qualquer outra coisa. Assim, quem queira comprar aí uma casa já sabe com o que conta. E essas limitações deverão ser conhecidas por qualquer novo adquirente, uma vez transmitida a propriedade. Uma espécie de gueto livre de pessimismos, capitalismos e açoites, portanto, para quem só queira à sua volta gente pia e cooperativa.

Agora deixar para determinação, a qualquer momento, de uma assembleia de condóminos a decisão sobre o uso que se pode ou não fazer de um apartamento, privado, quando este uso não infringe em nada a fruição normal da propriedade – que, recorde-se, serve, hélas!, para alojar pessoas –, é manifestamente demais e põe em risco, salvo melhor opinião, o direito de propriedade (talvez desde Borges Carneiro que ninguém entre nós defendesse nos jornais o direito de propriedade, mas, pronto, como isto é cíclico, algum dia teria de ser…).

Se o facto de haver mais seres humanos a circular no corredor ou verem-se agora raparigas pós-adolescentes a falar em estrangeiro, em trajes coniventes com a sua juventude, representa um problema lá no prédio para a D. Celestina do R/C ou para o dr. Alfredo do 2.º Esquerdo, a questão já será de outra ordem, não de propriedade horizontal – sempre achei aliás que as assembleias de condóminos deveriam contar com a presença obrigatória de um psicólogo.

Confesso que não me sensibilizam muito, portanto, os argumentos da paz violada no condomínio com a existência de alojamento local, contando que o uso que se faça de cada casa seja civilizado (e isso nenhum contrato nem nenhuma alteração legislativa pode garantir sempre). Em contrapartida, não percebo como se estabelecem regras simplificadas e amigáveis para supostos alojamentos locais que funcionam como e são, na prática, hotéis; e, para aqueles que são legalmente hotéis, é só burocracia e licenciamentos. Alguém deve saber explicar isto seguramente.

Mas também não presto grande reverência aos argumentos de que se ameaça a economia das cidades e das famílias pobrezinhas com eventuais restrições ao alojamento local. Estas restrições podem e devem existir. E a primeira delas é fazer com que estes estalajadeiros paguem efectivamente impostos sobre os seus rendimentos e assegurar-se que o serviço que prestam tem qualidade, bem como se existe a funcionar um direito dos seus consumidores a serem protegidos e poderem reclamar e que isso tenha consequências. E naturalmente que as regras sobre ruído e higiene no condomínio são mantidas. Seguramente que isso já está tudo na lei, pois…

Tudo isto não sensibiliza os dois legisladores arautos da nova pacificação comunitária, saudosos da harmonia pré-estabelecida que sempre se viveu afinal nas nossas cidades verticais e crentes que uma decisãozinha de condóminos tem o poder de se substituir a uma política de habitação para as cidades.

O que é preciso é a autorizaçãozinha, o papelinho assinado, a comunidade de bons vizinhos a decidir sobre o que pode ou não pode a D. Helena fazer. Isso, sim, é viver em família a sério! Vamos a isso: erigir na lei a inveja dos vizinhos como critério reitor do que se pode e não pode fazer em casa! Ah, que sonho lânguido o de poder voltar-se a animar uma boa assembleia de condóminos, daquelas catárticas, com pancadaria honesta e tudo!

Uma sugestão final: certamente que se conseguirá arranjar uma pool de assembleias de condóminos em funcionamento a serem visitadas pelos nossos parlamentares, de modo a terem uma ideia de quão desajustado está o regime da propriedade horizontal perante o que é a vida real num prédio hoje em dia. Talvez assim possam novos projectos de lei ver a luz do dia, alguns até necessários e conformes à Constituição.

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