Nos pianos dos dois Filipes cabe quase toda a música

Filipe Melo e Filipe Raposo juntam-se aos dois pianos esta quinta e sexta-feira no Teatro São Luiz, em Lisboa. É a estreia de um duo que tem em comum um largo espectro de referências – do jazz e da clássica à música popular portuguesa.

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Filipe Melo, à esquerda, e Filipe Raposo Rui Gaudêncio

É mais ou menos como uma banda de rock. Só que Filipe Melo e Filipe Raposo tocam dois pianos e não guitarras, dedicam-se a um reportório que vai de Bach a Sérgio Godinho, percorrendo os teclados com referências da música clássica, da improvisada e da popular portuguesa. Nem com binóculos se avista o rock, certo? Assim parece, mas é Filipe Melo quem diz que o processo de preparação do espectáculo Dois Filipes, Dois Pianos – no Teatro São Luiz, em Lisboa, quinta (público infantil) e sexta (graúdos) – teve algo de banda de rock. Quer isto dizer que o concerto para dois pianos foi tomando forma, em muitos momentos, através da passagem pelos temas, com as decisões dos arranjos a serem tomadas e aperfeiçoadas a partir da constatação em cada momento daquilo que funcionava, ao invés de uma meticulosa escrita na pauta dos papéis que os dois assumirão.

É possível que tudo se explique a partir de um episódio comum aos dois, ocorrido quando estudavam piano clássico em instituições que não queriam ver as mãos dos seus alunos conspurcadas por música que não obedecesse ao mais rigoroso cânone da música erudita. “Aconteceu-nos aos dois”, conta Filipe Raposo ao PÚBLICO, “em sessões de estudo particular, muitas vezes ocupadas por momentos de improvisação, abrirem a porta da sala onde estávamos para nos dizerem que não podíamos tocar aquela música ali. Era um regime conservador que rotulava as músicas diferentes daquelas que eram ensinadas na escola. Acho que isto também terá marcado a nossa evolução como pianistas.”

“Criou em nós uma reacção”, acrescenta Filipe Melo, que na altura gastava as suas tardes num exercício com standards de jazz que consistia em “agarrar num tema e tocá-lo nos 12 tons, e depois agarrar em 12 temas e tocá-los num só tom, para aprender harmonia” – Raposo tentava seguir as pisadas da improvisação sem rede de um dos seus heróis, Keith Jarrett. Essa tal reacção levá-los-ia a evitarem fechar a música em gavetas, empurrando-os ainda mais na direcção de outras músicas. Embora ambos tenham álbuns gravados de acordo com um figurino jazzístico, Filipe Raposo toca neste momento em duo com Sérgio Godinho e tem trabalhado com autores da música popular portuguesa como Amélia Muge ou José Mário Branco, enquanto Filipe Melo toca com o projecto Deixem o Pimba em Paz e assinou arranjos de cordas para Legendary Tiger Man ou Deolinda.

Não se tendo deixado aprisionar pela clássica, tal não significa que os dois Filipes dela fujam. Daí que esta primeira experiência a dois – “um desejo de média/longa data” que finalmente se concretiza – inclua uma peça do chamado “pai dos músicos”, Johann Sebastian Bach. É a ponta de um novelo que se desfiará passando por autorias dos dois ou por Moondog, e que chegará também até Que força é essa, de Sérgio Godinho. “Quando estávamos a discutir este tema”, justifica Raposo, “quisemos incluí-lo porque estamos também a prestar homenagem a todos os sobreviventes desta travessia do deserto que foi o período de crise.” É, portanto, uma escolha que pretende vincar a missão de “abanar consciências” que a música transporta, mesmo quando a letra fica ausente do palco e terá de ser cada espectador a recuperar as palavras.

A 16 de Junho, o São Luiz receberá igualmente os pianos de Pedro Burmester e Mário Laginha – que, acrescidos de Bernardo Sassetti, deram corpo ao projecto 3 Pianos. São nomes que Raposo e Melo têm na mais elevada consideração – e a que juntam ainda João Paulo Esteves da Silva –, lembrando Filipe Melo do concerto de Burmester e Laginha no CCB, em 1993, que deu origem ao álbum Duetos. “Foi muito marcante, na altura, ver a combinação e as diferenças estilísticas”, diz. São, na verdade, também as diferenças que os dois pretendem levar para palco, talvez até mais do que a confirmação de um universo comum. “Nunca estou completamente confortável porque isto é entrar no universo musical do Filipe [Raposo] e tentar não soar igual a ele, não ir atrás como um papagaio, mas tentar ver como é que me insiro ali e vice-versa.”

Embora a estreia absoluta só esta quinta-feira aconteça, a vontade em que possa começar aqui algo de fôlego está na cabeça de ambos. Melo queixa-se de projectos que desaparecem depois do primeiro concerto e diz-se mais interessado em relações – amorosas, amizades, musicais – nas quais possa investir. Para não seguir a corrente em que relações significativas são substituídas por scrolls de redes sociais.

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