Macbeth, poucas palavras para tanto sangue

A “peça escocesa” chega esta quinta-feira ao TNSJ. Uma grande estreia do encenador Nuno Carinhas nas lides shakespearianas.

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Instigado pelas profecias de três bruxas que lhe prometem o trono da Escócia, um general escocês, Macbeth, assassina o seu soberano, Duncan, inaugurando uma sucessão de crimes que o conduzirá a uma vertiginosa espiral de ambição, violência, loucura e morte. Estreada provavelmente em 1606, Macbeth é a mais sanguinária, mas também a mais breve das grandes tragédias shakespearianas. É uma peça “de uma velocidade vertiginosa, em que praticamente não há fronteira entre verbalizar e fazer”, observa o poeta Daniel Jonas no prefácio à sua tradução do texto, feita expressamente para esta produção do Teatro Nacional de São João (TNSJ), que se estreia esta quinta-feira, abrindo a 40.ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e que se manterá em cena até dia 22.

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Instigado pelas profecias de três bruxas que lhe prometem o trono da Escócia, um general escocês, Macbeth, assassina o seu soberano, Duncan, inaugurando uma sucessão de crimes que o conduzirá a uma vertiginosa espiral de ambição, violência, loucura e morte. Estreada provavelmente em 1606, Macbeth é a mais sanguinária, mas também a mais breve das grandes tragédias shakespearianas. É uma peça “de uma velocidade vertiginosa, em que praticamente não há fronteira entre verbalizar e fazer”, observa o poeta Daniel Jonas no prefácio à sua tradução do texto, feita expressamente para esta produção do Teatro Nacional de São João (TNSJ), que se estreia esta quinta-feira, abrindo a 40.ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e que se manterá em cena até dia 22.

Um dos méritos desta encenação, que marca a estreia de Nuno Carinhas no reportório shakespeariano, é conseguir manter em palco essa sensação de torvelinho: uma cadeia de acções que, uma vez desencadeada, corre para o seu desenlace sem que nada a possa travar ou atrasar. Um efeito paradoxalmente reforçado pela lentidão da cena de abertura, que Carinhas expande muito para lá do que o texto de Shakespeare sugere. A primeira e fugaz aparição das bruxas, que combinam rapidamente entre si o encontro que promoverão com Macbeth, é aqui transformada numa demorada coreografia de grande beleza visual, uma das mais conseguidas singularidades desta encenação. E esta espécie de dança das Moiras serve também para marcar desde o início a relevância de alguns tópicos centrais da peça: não apenas o da intromissão do sobrenatural nos destinos humanos, mas também, por exemplo, o da noite e da insónia como ominoso território propício à alucinação, às decisões precipitadas, ao crime e à loucura.

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No que Carinhas não vê qualquer significado especial é nesta sua chegada algo tardia à obra de Shakespeare. Recordando algumas das suas encenações anteriores, como Tambores na Noite, de Brecht, Antígona, de Sófocles, ou Os Últimos Dias da Humanidade, de Karl Kraus, explica: “De uns anos a esta parte tenho feito coisas que têm muito que ver com política, massas, ideologia, e agora apeteceu-me focar mais a loucura individual.” E para o ajudar nesta sua “estreia” foi buscar João Reis, um actor que já deu corpo e voz a muitas personagens do dramaturgo inglês, e que em tempos foi um dos mais recorrentes protagonistas dos espectáculos encenados por Ricardo Pais e por Carinhas no TNSJ. A interpretação de Reis, que contracena com Emília Silvestre no papel de Lady Macbeth, é um dos pontos altos da peça, mas todo o elenco é convincente. E curto. Com escassos dez intérpretes numa peça muitas vezes encenada com elencos de 20 ou 25, alguns actores assumem várias personagens, e foi ainda preciso cortar ou redistribuir algumas falas.  

Encenada vezes sem conta, transposta para o grande ecrã por Orson Welles, Akira Kurosawa ou Roman Polanski, para citar apenas algumas das suas muitas versões cinematográficas, a “peça escocesa”, como os mais supersticiosos preferem chamar-lhe, evitando pronunciar o apelido maldito, tem sido também alvo de leituras muito diversas, e por vezes díspares. Macbeth é um nobre implacável mas valoroso a quem o excesso de ambição arruína ou é apenas um vilão cruel e sem escrúpulos? E Lady Macbeth? É uma megera fria e calculista ou é uma esposa amantíssima que deseja apenas a glória do marido? E trata-se de uma peça moralista, que procura dissuadir-nos de cedermos a ambições desmedidas, mostrando-nos o alto preço que pagaremos no fim, ou tem razão Nietzsche quando sugere que atribuir a Macbeth este efeito moralizador é tão absurdo como acreditar que Tristão e Isolda possa funcionar como prevenção contra o adultério? 

Nuno Carinhas preferiu não tomar partido. “Quantos mais caminhos deixarmos abertos para quem vê a peça, melhor”, diz o encenador. “Os afunilamentos são sempre de evitar.” Um objectivo facilitado pelo seu método de trabalho. Antes de se começarem sequer a esboçar quaisquer soluções concretas de encenação, os textos são longamente discutidos com actores, dramaturgistas, tradutores, e até com especialistas exteriores à produção: durante a preparação do espectáculo, os ensaístas António M. Feijó e Ana Luísa Amaral, ambos tradutores de Shakespeare, participaram em ensaios abertos e discutiram a peça com os elementos da equipa, bem como Pedro Mexia, que viu e comentou com eles as adaptações de Orson Welles e Kurosawa.

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Não menos importante foi o trabalho com Daniel Jonas. “Vi-me confrontado com as palavras de dois poetas, o que escreveu e o que traduziu”, diz Carinhas, que elogia o modo como Jonas conseguiu realizar “uma tradução muito concisa e económica”, vital para não trair essa compressão e velocidade características da peça. Pedro Sobrado, um dos responsáveis pela dramaturgia, acrescenta: “Quando se encomenda uma nova tradução a alguém que é ele próprio um poeta extraordinário e um espectador de teatro, com quem podemos trabalhar sobre o texto, isso é já um primeiro gesto da encenação."

A contribuição do TNSJ para valorizar o património disponível de traduções de teatro – basta pensar, por exemplo, que sem a recente encenação de Os Últimos Dias da Humanidade dificilmente teríamos hoje uma tradução integral da obra-prima de Karl Kraus – é um aspecto que mereceria, aliás, ser mais destacado. E se à publicação de novas traduções somarmos os ainda mais raramente referidos Manuais de Leitura que acompanham sistematicamente as produções da casa, seria justo reconhecer à pequena equipa que assegura o núcleo de edições do TNSJ o estatuto de instituição cultural relevante por direito próprio.

Basta olhar para o manual distribuído aos espectadores deste Macbeth, que, além de alguns incisivos olhares históricos sobre aspectos específicos da peça – colhidos em De Quincey, Nietzsche ou Lampedusa –, inclui textos originais de ensaístas e tradutores como Daniel Jonas, Rui Carvalho Homem ou Ana Luísa Amaral, um estudo de Yvette K. Centeno sobre bruxarias, magias e profecias, outro da psicanalista Fátima Sarsfield Cabral, um comunicante relato da construção da dramaturgia da peça, assinado por Pedro Sobrado, e até um ensaio inédito encomendado a um dos grandes nomes dos actuais estudos shakespearianos, Michael Dobson, director do Instituto Shakespeare.

Uma mangueirada de sangue

Regressando à encenação e cenografia que Nuno Carinhas concebeu para este Macbeth, a primeira coisa a sublinhar é que é francamente impressionante o que se consegue fazer – em termos práticos e estéticos – com um jogo de cortinas. Custa admitir que possa haver qualquer coisa de especialmente ominoso ou arrepiante no mero movimento de uma cortina a avançar do fundo do palco para a boca de cena, mas é isso mesmo que o espectador sente, e não tarda está a imaginar que o rasgão entre os dois panos desenha uma espada assassina.

Outra ideia simples que funciona bem é a da luminosidade avermelhada que banha o palco, e que pode trazer à cabeça uma passagem do texto de Daniel Jonas em que este assinala a “tentativa trapalhona” de Macbeth para resolver algumas pontas soltas deixadas pelo seu primeiro crime como o gesto de “alguém que tentasse lavar o chão com uma mangueirada de sangue”. E mais não se diz, que convém não levantar demasiado a cortina.

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Risco que Carinhas não quis definitivamente correr foi o de “actualizar” demasiado a peça. Com excepção das Moiras, vestidas e maquilhadas um tanto ao estilo das “góticas” dos nossos dias, todas as restantes personagens envergam cotas de armas e roupas que associamos à Idade Média. E até foi acoplado à equipa um mestre de esgrima para orientar e tornar verosímeis algumas lutas de espada mais decisivas. “As actualizações têm o perigo de trazer tudo de tal forma para o presente que a essência da peça acaba por ser desvirtuada”, argumenta o encenador, acrescentando que se cai desse modo num “contra-senso” que pode levar o espectador a perguntar-se com legitimidade: “Então [se isto é o presente] porque é que estão a falar assim e a comportar-se daquela maneira?”