As vidas duplas de David Lynch

Um programa de reposições, curtas e documentários para iluminar o tempo que medeou na carreira do realizador entre o Twin Peaks original e o seu regresso.

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David Lynch gosta de nos arrastar sem nos querer forçosamente dizer onde é a saída

Aproveitando o regresso de David Lynch com os novos episódios de Twin Peaks após uma ausência de onze anos, eis um (muito “Lynchiano”) programa de exibição que agrupa uma miscelânea muito particular de objectos. Primeiro, a reposição, em cópias correspondentes às recentes remasterizações digitais em 4K, de Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, a mal-amada “prequela” de 1992 com que Lynch quis à altura fechar o “capítulo” da série televisiva, e de Mulholland Drive, o filme de 2001 que começou vida como um episódio-piloto para um possível regresso à televisão que não se concretizou.

Depois, a estreia de David Lynch – A Vida Arte, documentário de 2016 onde o realizador fala longamente sobre a sua infância e adolescência, e que termina nas rodagens de Eraserhead, a sua primeira longa-metragem. Finalmente, numa adenda com o seu quê de extra de DVD em grande ecrã, dirigida essencialmente aos completistas mais ferrenhos, há a exibição de Twin Peaks: the Missing Pieces, montagem de cenas deixadas de fora de Os Últimos Sete Dias realizada em 2014 pelo próprio Lynch, e de mais de três horas de curtas-metragens realizadas ao longo da sua carreira (funcionando como um complemento às experiências artísticas amplamente ilustradas no documentário).

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O conjunto, deve dizer-se, é particularmente iluminador — do fascínio que continuamos a ter pela figura de Lynch, mas também dos leitmotifs e dos temas e referências que o cineasta continua sistematicamente a trabalhar. A começar pela idealização de uma small town americana onde tudo é aparentemente perfeito, que encontrámos pela primeira vez em Veludo Azul, mas onde basta observar um pouco mais demoradamente para encontrarmos as demãos de pintura ou a massa que foi colocado para tapar as falhas, as quebras ou as infiltrações.

A Vida Arte é particularmente significativo no modo como Lynch recorda perante a câmara uma infância feliz no pós-Segunda Guerra Mundial no meio de uma família nuclear típica que parecia viver o sonho americano. Quando sobreposta aos filmes, essa recordação sugere que o realizador nunca fez outra coisa que não fosse buscar esse estado de inocência impossível, ao mesmo tempo que não se coibia de mostrar a sua decadência e degradação.

Não é outro o tema comum a Os Últimos Sete Dias e Mulholland Drive, filmes que estão constantemente a alternar entre a fachada e os bastidores, a aparência e a realidade por ela escondida. Laura Palmer, a rainha do baile de finalistas, Betty, a neófita aspirante a actriz, Rita, a morena misteriosa, têm todas vidas duplas, uma “casta” e uma “dissoluta”, amor e sexo como irreconciliáveis sob pena de destruir o universo em que vivem. E, como elas, também os filmes assumem uma vida dupla, com uma narrativa aparentemente convencional ambientada numa perfeição luminosa que só existe no cinema (ou na televisão) que se desintegra num surrealismo negro quase automático, com a linguagem dos sonhos e a recorrência constante de fantasmas a revelar, de modos quase inexplicáveis, esse adeus à inocência.

O tempo fez bem a Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, filme que parece ter sido feito a pensar na revisão 25 anos depois com que Laura se despedia do agente Cooper na série, mesmo que se sinta já nele um certo cansaço com estas personagens. Mulholland Drive (que a hipérbole de alguns críticos e do marketing define risivelmente como “o melhor filme do século XXI”) apenas confirma, 15 anos depois, a queda no glorioso formalismo estilizado que já se sentia em 2001, como para compensar a sensação que Lynch estava aqui a “reciclar” em piloto automático os seus greatest hits (donzelas em perigo, conspirações misteriosas, bares bizarros, nostalgia fifties). Ambos projectam igualmente uma ideia de paródia ou irrisão menos evidente aquando da estreia, ou pelo menos uma consciência auto-referencial das fórmulas que Lynch estava a explorar abertamente.

A Vida Arte, por seu lado, é um documentário formalmente extraordinário, filmado, montado e pensado com evidente amor, mas que acaba por resumir-se a um exercício velado de hagiografia devota. Mesmo que Lynch revele aqui mais do que alguma vez o ouvimos fazer, e que haja um olhar muito interessante sobre a sua produção artística fora da imagem em movimento, Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm parecem nem ter consciência que voltaram a cair na mesma armadilha de sempre do realizador, em que ele não diz nada dizendo tudo, e em que tudo parece simples sem o ser na verdade. São mais achas para a fogueira do labirinto para que David Lynch gosta de nos arrastar sem nos querer forçosamente dizer onde é a saída. 

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