A passagem da vida, de memória em sulco

Old Man’s Journey não se torna um clássico porque tem uma jogabilidade estanque, mas enquanto estão na sua presença, estão na presença de uma introspecção, do percorrer de uma vida estranha que acaba por ser a familiaridade da nossa.

Old Man’s Journey

Enquanto jogava Old Man’s Journey lembrei-me diversas vezes de Tsumiki no ie, a curta de animação assinada por Kunio Kato. As duas obras partilham o sentimento de jornada em que o tempo pretérito é relembrado por um sénior. É uma aventura emocional, sentindo-se os grãos de areia a passar pela ampulheta; são os actos de quem caminha em direcção ao cessar.

A obra da Broken Rules começa com o protagonista a receber uma misteriosa carta. O conteúdo dessa encomenda desencadeia uma acção imediata: pegar numa mochila e ir, simplesmente começar a ir dali para fora e para dentro de si. Cenário atrás de cenário, percorremos esta jornada com ele, vamos onde ele nos mostra, ajudando-o sempre que o caminho se torna demasiado íngreme em direcção à reviravolta final.

E, tal como em Tsumiki, certos pontos desencadeiam momentos cruciais na vida do protagonista, mostrando ao jogador quem foi, por onde foi definida a sua existência e, finalmente, o motivo que o levou a fazer esta caminhada. Automaticamente, estamos perante um videojogo que não se ensaia em enveredar por caminhos emocionais, por transmitir acima de tudo a passagem do tempo, tentando exortar a mensagem-lembrança que nada disto é eterno.

É um arco narrativo contado sem a definição da palavra, ou seja, são os breves trechos subtilmente animados que vão implementando no nosso pensamento a dedução do que foi acontecendo. É uma abordagem já testada, que resulta neste caso pela afirmação visual das cenas e, sobretudo, porque estas janelas focam-se cirurgicamente em acontecimentos marcantes: é a súmula de uma vida em breves actos.

A alimentar a obra está uma jogabilidade sem grandes complicações. Old Man’s Journey apresenta-se num falso 2D, ou seja, com cenários expostos em várias camadas. O cerne do processo está na manipulação dessas camadas até que seja descoberta uma linha transversal para ser calcorreada pelo protagonista, depois de o jogador lhe indicar para onde se deve deslocar. São puzzles ambientais que apenas se tornam minimamente desafiantes na recta final da obra e, mesmo assim, não contem perder muito tempo até a lógica e a experimentação acabarem por resultar.

O factor que define estas ligeiras complicações é a impossibilidade de mover o cenário em que o protagonista está. Então, o jogador é obrigado a estudar as alternativas: ver o que pode ser mudado no cenário e antever cada ajuste de forma a conseguir traçar um caminho acessível até à saída. Ainda que cada camada tenha um ajuste limitado, nunca há variáveis suficientes para que o estudo da solução demore mais de dez minutos nos exemplos mais complicados.

Nota-se com o passar da obra que a produtora se esforçou minimamente para introduzir algumas nuances a este núcleo duro. Já na segunda metade há rodas que têm que ser movidas com a lei da gravidade para destruir muros e deixarem o caminho desimpedido e há também ovelhas que têm que ser movidas entre pachos de erva. Há ainda secções em que temos que mover o terreno para que os veículos onde o protagonista se desloca possam continuar a sua marcha, seja um comboio ou um camião. Este esforço, todavia, não é suficiente para que o cômputo geral da obra seja refrescado.

E chegar ao final não demora muito. Quem quiser pode perfeitamente terminar o jogo numa tarde. Obras como What Remains of Edith Finch são curtas e a jogabilidade também não é desafiante, contudo, também não é um entrave, deixando-nos absorver, no caso da obra da Giant Sparrow, uma escrita sublime. No caso de Old Man’s Journey, a jogabilidade insere-se num género e não desenvolve o suficiente, obrigando-nos a participar nestes engenhos sem chegarmos à sua evolução.

Old Man’s Journey ficará na memória pelo seu departamento técnico. São paisagens que parecem desenhadas à mão, com essa direcção artística a ser colocada ao serviço do sentido de travessia. Há momentos em que o isolamento é contemplativo e a forma como a personagem é colocada rodeada de cenário leva-nos a perceber facilmente e com eficácia a sensação de conquista e do transpor de adversidades.

A direcção do jogo e o design são creditados a Felix Bohatsch e a verdade é que o trabalho é memorável. O caminho é feito por pitorescas vilas dispostas pelas encostas como salpicos, por portos e por viagens de barco, por quedas de água aproveitadas para também serem caminhos, por moinhos de vento deixados à sua sorte, por um breve passeio de balão de ar quente, e até por uma secção final dada à fantasia.

Por outras palavras, a arte é sublinhada pela diversidade, o que dá aos jogadores mais quadros interactivos para manipular. A isto junta-se o factor meteorológico para pontuar o sentimento, levando-nos a viajar por céus carregados e por tempestades. Outro factor que funciona de mão dada com a competência gráfica é a sonoplastia, especialmente se experimentarmos Old Man’s Journey com auscultadores.

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Se olharmos para o sentido geral da obra, a Broken Rules não falha na hora de nos levar pela aventura e, sobretudo, na consagração da vida, da sua passagem. O conceito funciona especialmente por tudo o que extrai dos departamentos técnicos. Este videojogo só não se afirma como obrigatório porque a jogabilidade recorre em demasia à mesma mecânica, não sendo capaz de se diluir no resto da obra ou de oferecer um desafio. Ainda assim, é provável que depois de o terminarem sintam a urgência da caminhada e da contemplação. Se for o caso, a jornada do ancião é feita também pelo jogador adentro.

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