As cartas dos migrantes são um livro sobre o Portugal de quem parte e de quem chega

Enciclopédia dos Migrantes é apresentada esta terça-feira nos Paços do Concelho, em Lisboa. São 400 histórias que fazem deste um livro diverso, que quer desconstruir o que é isso de viver longe das origens.

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Faustino Ie escreveu uma carta à mulher, sobre as saudades da Guiné-Bissau. “Estou cansado deste lugar. Tenho saudades dos meus filhos” Pablo López
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“Emigramos por razões diferentes, mas o que nos move são sempre as mesmas coisas. O reconhecimento, o amor, a saúde”. Filipa Bolotinha tanto podia estar a falar do guineense Faustino Ie como da portuguesa Natalia Nunes Bonnaud. Não que a história das migrações seja apenas uma. Pelo contrário. As 400 histórias reunidas da Enciclopédia dos Migrantes são todas diferentes, mas confessam um sentimento comum: “O que provoca em nós a distância do local onde nascemos e onde deixamos as nossas coisas”.

A Enciclopédia dos Migrantes é um livro de cartas, escritas por 400 migrantes que confiaram em pequenos textos as suas histórias. Há 103 países representados, 74 línguas maternas. São testemunhos escritos à mão, recolhidos em oito cidades europeias - Rennes, Brest, Nantes, Gijón, Cádis, Porto, Lisboa e Gibraltar – e traduzidos nas quatro línguas de publicação do livro (francês, espanhol, português e inglês). São textos sobre a distância e a saudade.

Cada cidade encarregou-se de identificar 50 migrantes. Em Lisboa, o papel foi entregue à associação Renovar Mouraria e Filipa Bolotinha ficou a coordenar o projecto. No Porto, a responsabilidade ficou a cargo da Associação de Solidariedade Internacional e da Câmara Municipal, que apresentaram, a 18 de Maio, a enciclopédia à cidade.

Existem apenas oito edições em papel, encadernados à mão. Um por cada município participante, para que a enciclopédia seja entregue à cidade e partilhada entre os seus. Em Lisboa, o livro é apresentado esta terça-feira, às 19h, na Sala do Arquivo, nos Paços do Concelho de Lisboa. A entrada é livre.

O confronto, a reconciliação, a despedida

Abigail Cosme emigrou com os pais há mais de 30 anos. Deixava São Tomé e Príncipe por um Portugal “diferente”. Foi viver para uma aldeia. Tinha paz. Lembra-se como os vizinhos, portugueses, estranhavam os seus costumes. Desconfiavam. Nessa altura, valeu-lhe a “linguagem das crianças”, por ser universal. Quando cresceu, reparou como a sociedade se encarregava de lhe “colocar barreiras e limitações”: “De nada valia tentar, pois o nosso lugar seria no sector primário e secundário, mão-de-obra barata, pouco qualificada e restrita aos subúrbios”. A sua carta é um agradecimento aos pais pela “ousadia” de a terem ensinado a não ir por esse caminho, a ser aquilo que quisesse.

“Convosco aprendi que ser emigrante pode ser uma condição, mas nunca uma limitação. Aprendi que toda a gente pode ser tudo… Em qualquer lugar”, escreveu.

Estas cartas são relatos íntimos. “Toda a equipa sentiu a responsabilidade e a confiança que nos estava a ser depositada”, confessou ao PÚBLICO Filipa Bolotinha. Por isso, um elemento da equipa reuniu com cada um dos participantes enquanto estes escreviam os seus textos. Houve momentos de reflexão que muitos não esperavam. “As cartas deram oportunidade para o confronto, para a reconciliação, para despedidas que nunca foram feitas”. Tinham que ser escritas na língua materna, dirigidas a alguém no país de origem. Há cartas escritas a amigos de infância, a familiares falecidos, aos pais e aos melhores amigos.

Natalia Nunes Bonnaud escreveu ao “querido Portugal”. Disse-lhe palavras bonitas, mas não escondeu a dureza com que fala do país “da crise e das injustiças” que trocou por França. Em Brest, não deixa de reconhecer a mesma “simplicidade das pessoas, a cultura da terra e do mar e das viagens” que conhecia em Alvaiázere, Leiria, onde deixou as raízes. Mas “se tudo fosse bom não teria saído. Agradeço-te por tudo, esperando que melhores.”

Volta para o teu país

Faustino Ie está cansado de Lisboa. É culpa da distância e da “vida difícil”. “Tenho saudades dos meus filhos, gostava de estar junto deles, mas não posso. Por vezes também tenho vontade de comer a comida da minha terra, mas não consigo.” Natural de Biombo, na Guiné-Bissau, Faustino já esteve sem casa, sem dinheiro para comida, sem roupa para vestir. “E é isso que me causa mágoa, uma grande dor no coração. Como é que vou viver neste país? Eu, na condição de doente ou de imigrante, não vale a pena”.

Na infância, em França, Natália de Almeida habituou-se a ouvir os colegas dizerem para voltar para o seu país, por ser francesa, com nome e antepassados portugueses. “Meu irmão, eu acreditei neles. Fui em busca dessa identidade forçada¸ gravada nos nossos nomes”. Mudou-se para o Porto.

“Aqui também encontro, por vezes, o mesmo tipo de idiotas que me diz: ‘Volta para o teu país’. Mas agora já não é por causa do meu nome. Depois de tantos anos de imigração, aprendi que onde quer que estejamos no mundo, haverá sempre um certo tipo de indivíduos que continuará a encontrar na diferença do outro um motivo para ser mau", escreveu. Hoje diz que os colegas estavam errados. “Hoje tenho saudades de casa. Hoje, não teria partido…”.

“No livro não há só um tipo de emigrante, que encaixa no estereótipo. Há várias históricas, vários migrantes”, explicou Filipa Bolotinha. Cada um fala por si para quebrar preconceitos, desconstruir a forma como se olha para a migração.

O angolano Nzinga António recorda como eram só homens, os emigrados, quando chegou a Lisboa e não sabiam “cozinhar muito bem”. Ortensia Nae, romena, conta aos pais como é a capital e, naquelas linhas, parece mais perto de casa. “Meus queridos pais, fiquei um bocado convosco porque a minha alma viajou até vós nesta carta”, escreveu.

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