Férias algarvias em 3D

Para Pão Rico a autora-intérprete Vera Mantero pesquisou sobre a descaracterização do litoral algarvio.

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Vera Mantero em Pão Rico dr
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“Este é um espectáculo de ideias feitas”, prevenia Vera Mantero no texto da folha de sala. Para Pão Rico a autora-intérprete pesquisou sobre a descaracterização do litoral algarvio, a partir de um lugar  emblemático: a cidade de Quarteira. O desafio não era fácil: o que pode uma performance acrescentar aos lugares comuns, quando o debate é acirrado por já tão esgrimidos argumentos e o termo gentrificação entrou na gíria?

Com o olhar desarmado de quem assume a condição exterior, de turista, Mantero leu e conversou com os locais, deambulou por aldeamentos e campos de golf, pelo betão a esmagar a praia, lotas e parques diversão. A peça,  eco genuíno e desafectado, sensível e bem-humorado dessa vivência, encontrou  dispositivos cénicos certeiros para com ela deslizarmos num  registo impressivo e reflexivo em 3D,  a que a intimidade do anfiteatro montado dentro do palco ajudou.

As balizas foram bem definidas: em cena três grandes balões azuis (do icónico creme Nívea) ladeados de redes pesca; ao fundo, a projecção em grandes dimensões da areia da praia revolvida por mãos cobiçosas a desenterrar notas de Euro. Zoom out para a vista panorâmica da cortina de prédios sobre a praia de Quarteira, e eis que Mantero irrompe em palco, de biquíni, o glamour risível da veraneante temporária  empolado pelo logotipo sonoro da 20th Century Fox  em alto volume.  

Mas a experiência presentificada expande-se a outras cronologias. Excertos de As Praias de Portugal, o “guia para banhistas e viajantes” de Ramalho Ortigão (1876), ditos aos vivo ou em off (Mantero revela-se uma belíssima diseuse) são uma actualíssima sátira existencial sobre o ócio, e a narração novecentista dos efeitos benfazejos da exposição balnear, lembra-nos épocas em que poucos sabiam o que eram férias e, muito menos, o turismo. Ou como a febre do dinheiro e da areia infectou a orla algarvia no pós-25 de Abril, quando a projecção percorre páginas do Jornal de Quarteira  dos anos 70/80, enquanto a  intérprete interage com um hilariante kit de relva portátil e tacos de golfe.

Vistas do Google a revelar o padrão repetitivo da malha urbana de aldeamentos e piscinas, alternam com a imensidão tranquila do mar; marinas com iates para todo o tipo de bolsos a impor-se a pequenas embarcações pesqueiras de nomes extraordinários. Ouvimos sobre o atum, o “porco do mar” do qual, da lota às indústrias de transformação, tudo se aproveita; e, enquanto ao canto do palco um ecrã expõe os gestos automatizados das camareiras nos quartos de hotel, seguimos o  incrível guia de preceitos desta  população sazonal, silenciosa e descartável,  destituída da aura   de resistente trágico que, apesar de tudo, envolve o pescador.

O videoclip do rap algarvio com bairros anódinos em fundo, é o de uma região a viver a vários tempos, esquecendo que o baile mandado terá sido o seu primeiro rap.

Depois do timbre nostálgico de Serrenhos do Caldeirão, exercícios em antropologia ficcional (2012), sobre a desertificação do interior montanhoso, Mantero foi bem mais acutilante no papel de artista-etnógrafa, embora as conexões entre a sua vincada personalidade motora e a concepção cénica nem sempre entrem em conjugação. Se ambas as peças assinalam um novo território criativo no seu percurso, sinalizam, ainda, um discreto novo interesse da dança portuguesa por “temas nacionais”. E, se o Algarve conheceu a explosão turística muito antes do resto do país, a imagem final, um mergulhador-peixe a fitar-nos perplexo enleado na rede que desceu sobre o proscénio, é a de todo um Portugal a assistir, atónito, a um fenómeno sem precedentes.

 

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