Morrer lentamente em protesto

“Se te despedirem e te acusarem de terrorista, o Governo está a condenar-te a uma morte lenta porque não conseguirás encontrar trabalho e estás impedido de sair da Turquia. É por isso que o Semih está em greve de fome. Para que a sua morte lenta se faça ouvir como protesto” – declarações de Esra Özakça, esposa de Semih

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Nuriye Gülmen, 28, académica e Semih Özakça, 35, professor primário, são dois entre os milhares de académicos e funcionários públicos despedidos no decorrer de uma "caça às bruxas" após a tentativa de golpe de Estado de 15 de Julho de 2016. Sob o pretexto de "limpar" as estruturas do Estado com ligações terroristas, como o movimento Gülen ou o PKK, o Governo do AKP e o Presidente Erdogan têm atacado toda e qualquer força opositora ao seu regime. Nuriye e Semih estão em greve de fome desde 11 de Março de 2017, em protesto querem os seus trabalhos de volta. Foram presos pelas forças policiais na passada noite de 23 de Maio por constituírem potencial ameaça à segurança do país.

Desde 15 de Julho de 2016 que a Turquia vive em decretado Estado de emergência permitindo ao governo e ao Presidente contornar a Constituição e os direitos humanos em prol da segurança interna. No decorrer de decretos governamentais mais de 150 mil funcionários públicos foram despedidos por supostas ligações terroristas, entre os quais perto 5 mil são académicos e mais de 40 mil são professores. Os critérios são sempre obscuros e na maioria das vezes não são apresentadas provas ou acusações. Na verdade, basta que se tenha participado em qualquer forma de oposição a Erdogan, como os protestos de Gezi em 2013 ou ter assinado a petição ‘Académicos pela Paz’ em 2016, como é o caso de Nuriye e de Semih.

Semih Özakça, após terminar o seu percurso universitário foi colocado numa escola em Horasan na província de Erzurum, uma das mais inóspitas e montanhosas regiões da Turquia. No seu manifesto de greve de fome podem ler-se os enormes sacrifícios e privações de ter ensinado numa escola em ruínas, tendo na mesma sala crianças do primeiro ao quarto ano (Semih era o único professor da escola), e onde no inverno a neve entrava pela escola. Lentamente foi superando as adversidades e encontrando força para continuar: “Tenho saudades dos meus adoráveis alunos, das músicas que cantávamos, de ouvir as suas preocupações”. O ano passado tentou transferência para a região de Mardin, no sudeste do país, para se juntar à sua esposa Esra, também professora. Antes de o ter conseguido ambos foram informados de que estavam suspensos por tempo indeterminado, sem provas ou acusações.

Na manhã de sexta-feira, dia 26 de Maio, três dias após Nuriye e Semih terem sido presos, encontrei-me com a Esra e Ozan Demirel, amigo próximo de ambos. O rosto exausto mas determinado de Esra explicou-me o porquê de Semih ter decidido iniciar a greve de fome a 11 de Março: “Ele a Nuriye tentaram tudo. Protestos no centro de Ancara junto à estátua dos direitos humanos, foram detidos várias vezes pela polícia, depois tentaram petições, cartas atrás de cartas, e nunca tiveram resposta. A greve de fome foi a última escolha possível. Dezenas de pessoas na mesma situação já se suicidaram e ninguém ouviu as suas vozes de protesto. A greve de fome é morrer lentamente em frente das pessoas garantindo que as nossas vozes são ouvidas.” Esra e a mãe de Semih viriam a iniciar uma greve de fome desde a noite de 23 de Maio, após a detenção.

Nuriye Gülmen trabalhava como investigadora e professora na Universidade de Selçuk em Konya, quando, em decreto semelhante ao de Semih, foi informada da sua suspensão por tempo indeterminado, mais uma vez sem qualquer evidência ou acusação. Há quatro meses iniciou um contínuo protesto sit-in em frente ao memorial pelos direitos humanos na movimentada rua comercial de Yüksel, centro de Ancara. Foi detida várias vezes porque ao abrigo do Estado de emergência nenhuma forma de protesto é permitida. “Como puderem tirar-nos o nosso trabalho?” é a pergunta que o seu manifesto de greve de fome faz, seguindo-se as palavras de ordem “Estamos em protesto em nome de todos o que sofreram esta purga para que não cedam ao desespero e ao suicídio.”

Ozan Demirel diz-me que a Nuriye tomou a decisão de iniciar uma greve de fome para “alavancar um movimento que não pede justiça só para ela ou para o Semih, mas um grito que apela à resistência colectiva, um grito silencioso que que se faça ouvir pela Turquia e por todo o mundo.” Após um longo silêncio, mostra-nos as vitaminas que Esra toma desde que iniciou a greve de fome: “ Esta decisão não é individual, é profundamente política. Eles não querem apenas voltar aos seus postos de trabalho mas que todos os injustiçados na Turquia lutem pelos seus direitos e pela sua dignidade.”

Esra decreve, com um olhar duro, a brutalidade com que a polícia entrou nas suas casas na noite de 23 de Maio arrastando o Semih e a Nuriye para as viaturas policiais. “É um crime o que eles fizeram. Arrastar com violência alguém que está profundamente debilitado é um atentado contra as suas vidas.”

Nessa noite, Semih e Nuriye foram levados para a prisão de Sincan, em Ancara. Todas as visitas têm sido recusadas, os seus livros e as vitaminas foram confiscados. Têm direito a uma chamada por semana e a enviar cartas através do advogado. Nessa manhã de Sexta-feira, enquanto falávamos, o advogado enviou a foto de uma carta escrita no dia anterior por Nuriye. As mesmas palavras de ordem, de força e coragem percorriam todas as linhas.

Enfrentam uma acusação de pertencerem ao DHKP-C, braço armado de um movimento de esquerda que está inactivo à duas décadas, cujo envolvimento já negaram. Em recentes declarações o Ministro do Interior afirmou que a greve de fome é fictícia e que eles se alimentam todos os dias. Desde 11 de Março que sobrevivem através da ingestão de água, sumo de limão, açucares e vitamina B, tendo sido recentemente diagnosticados com síndrome Wernicke-Korsakoff.

O memorial pelos direitos humanos, onde se concentravam diariamente, foi rodeado por barreiras policiais e a circulação nas imediações está interdita. Esta é a imagem que melhor representa a Turquia de hoje: um país onde os direitos humanos são um "lugar" interdito.

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