Os prisioneiros esquecidos

A 28 de Maio de 1961, há precisamente 56 anos, o semanário The Observer, do Reino Unido, publicava o artigo de um advogado, Peter Benenson, que esteve na origem da criação da Amnistia Internacional.

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A 28 de Maio de 1961, há precisamente 56 anos, o jornal The Observer, do Reino Unido, publica um artigo do advogado Peter Benenson, com o título The forgotten prisioners. O artigo chama a atenção para as pessoas perseguidas e presas pelas suas opiniões políticas ou religiosas contrárias às dos seus governos. Benenson apela aos leitores para que escrevam aos líderes e instituições desses países para respeitarem e defenderem os direitos básicos dos seus cidadãos. A iniciativa, chamada de Apelo por Amnistia 1961 teria a duração de um ano e o sucesso da campanha dependeria da mobilização da opinião pública. Poucos dias após a publicação deste artigo, que o P2 apresenta numa versão editada, foram recebidas cartas de encorajamento à campanha vindas de personalidades políticas de todas as facções, educadores, clérigos, advogados, médicos, escritores, cientistas, artistas, de organizações nacionais e internacionais.

Abra o jornal em qualquer dia da semana e encontrará uma notícia de um qualquer lugar no mundo sobre uma pessoa a ser presa, torturada ou executada por as suas opiniões ou religião serem inaceitáveis para o seu governo. Há vários milhões de pessoas assim nas prisões — de modo nenhum, todas atrás da Cortina de Ferro ou da de bambu — e esse número continua a aumentar. O leitor de jornais sente-se impotente. Porém, se esses sentimentos de indignação por todo o mundo pudessem unir-se numa acção comum, poder-se-ia fazer algo eficaz.
Em 1945, os membros fundadores das Nações Unidas aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Artigo 18.º — Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19.º — Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Não existe actualmente uma forma segura para apurar quantos países permitem aos seus cidadãos o gozo destas duas liberdades fundamentais. O que importa não são os direitos consagrados na Constituição, mas sim se podem ser exercidos e são feitos cumprir na prática.
Há uma tendência crescente em todo o mundo para disfarçar os verdadeiros motivos pelos quais os “não conformistas” são presos. Mas os governos não são, de maneira nenhuma, insensíveis à pressão da opinião que lhes é externa. E quando a opinião mundial se concentra num ponto fraco pode, por vezes, ter sucesso em fazer um governo ceder.

Escritório em Londres para recolher factos

O importante é mobilizar a opinião pública rápida e amplamente, antes que um governo se enrede na espiral viciada que foi criada pela sua própria repressão e enfrente uma iminente guerra civil. Aí, a situação ter-se-á tornado demasiado desesperada para o governo fazer concessões. A força da opinião pública, para ser eficaz, tem de ter uma base ampla, internacional, não sectária e envolvendo todos os partidos políticos.

É por isso que lançamos o Apelo por Amnistia, 1961. Esta campanha, que começa hoje [28 de Maio], resulta da iniciativa de um grupo de advogados, escritores e editores em Londres, que partilham a convicção fundamental expressa por Voltaire: “Repudio as tuas opiniões, mas daria a vida pelo teu direito de as expressares.” Abrimos um escritório em Londres para coligir informação sobre os nomes, os números e as condições daqueles a que decidimos chamar “prisioneiros de consciência” e que definimos como: “Qualquer pessoa que esteja fisicamente restringida (na prisão ou de outra maneira) de expressar (em qualquer forma de palavras ou símbolos) qualquer opinião que honestamente tenha e que não defenda nem permita a violência pessoal.” Excluímos também quem conspire com governos estrangeiros para depor o seu próprio. O nosso escritório fará, de tempos em tempos, conferências de imprensa para captar a atenção para os prisioneiros de consciência seleccionados imparcialmente de diferentes partes do mundo. E prestará informação factual a qualquer grupo, existente ou novo, em qualquer parte do globo, que decida juntar-se ao esforço especial de defesa da liberdade de opinião e de religião.

Em Outubro será publicada uma edição especial da Penguin, intitulada Persecution 1961 [Perseguição 1961], que integra a nossa campanha de amnistia. Nela estão contidas histórias de nove homens e mulheres, de diferentes partes do mundo, de variadas convicções religiosas e políticas, que sofrem em encarceramento por terem expressado as suas opiniões.

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Uma vela gigante feita para a Amnistia Internacional (que adoptou como símbolo universal uma vela envolta em arame farpado) é transportada em 1978 em Brompton Road getty images

Uma dessas histórias é sobre a brutalidade revoltante com que o maior poeta de Angola, Agostinho Neto, foi tratado antes de os distúrbios naquele país terem irrompido. O dr. Neto era um dos cinco médicos africanos em Angola. Os seus esforços para melhorar os serviços de saúde para os seus conterrâneos africanos eram inaceitáveis para os portugueses. Em Junho do ano passado, a polícia política marchou até sua casa, chicoteou-o em frente da família e, depois, levou-o contra vontade. E desde então encontra-se na prisão, nas ilhas de Cabo Verde, sem acusações nem julgamento.

E, da Roménia, publicamos a história de Constantin Noica, o filósofo, que foi condenado a 25 anos de prisão porque, apesar de “retirado para o campo”, amigos e alunos continuaram a visitá-lo para o ouvir falar sobre filosofia e literatura. Este livro conta também o que aconteceu ao advogado espanhol Antonio Amat, que tentou construir uma coligação de grupos democráticos e que se encontra na prisão sem julgamento desde Novembro de 1958. E fala ainda de dois homens brancos perseguidos pela sua própria raça por advogarem que as raças de cor devem ter direitos iguais — o norte-americano Ashton Jones e o sul-africano Patrick Duncan.

“Descubra quem está na prisão”

A técnica de divulgar as histórias pessoais de prisioneiros com convicções políticas contrastantes é nova. E foi adoptada para evitar o destino de campanhas de amnistias anteriores que frequentemente se concentraram mais em publicitar as perspectivas políticas dos prisioneiros do que em objectivos humanitários.

E como podemos apurar o estado da liberdade no mundo hoje em dia? O filósofo norte-americano John Dewey disse: “Se quiser formar uma ideia sobre uma sociedade, descubra quem está na prisão.”

Este é um conselho difícil de seguir, porque são poucos os governos que acolhem bem perguntas sobre o número de prisioneiros de consciência que mantêm nas prisões. Mas um outro teste à liberdade que se pode fazer é o de apurar se é permitido à imprensa criticar o governo. Outro teste à liberdade é o de saber se os governos permitem a existência de oposição política. E um outro teste ainda é o de saber se aqueles que são acusados de ofensas contra o Estado têm julgamentos céleres e públicos em tribunais imparciais.

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Peter Benenson em 1991, 30 anos passados sobre a publicação do seu texto no semanário "The Observer" cortesia Amnistia Internacional /Miguel Arana

A forma mais rápida de trazer alívio aos prisioneiros de consciência é torná-los conhecidos e especialmente entre os seus conterrâneos. Com a pressão de nacionalismos emergentes e as tensões da Guerra Fria, é mais do que certo que haja governos que são levados a adoptar medidas de emergência para proteger a sua existência.

É crucial que a opinião pública insista que essas medidas não sejam excessivas, nem prolongadas para além do momento de perigo. Se a emergência durar por muito tempo, então um governo deve ser induzido a libertar os seus opositores das prisões, para que possam encontrar asilo noutros países.

Este é um ano particularmente apropriado para uma campanha de amnistia. É o centenário da tomada de posse do presidente Lincoln e do princípio da Guerra Civil que culminou com a libertação dos escravos norte-americanos; é também o centenário do decreto que emancipou os servos russos. E, há cem anos, o orçamento de [William Ewart] Gladstone anulou as opressivas taxas sobre os jornais e, assim, alargou o alcance e a liberdade da imprensa.

O sucesso da campanha Amnistia, 1961 depende do quão penetrante e poderosamente for possível mobilizar a opinião pública. Depende também de a campanha abranger todos na sua composição, ser internacional no seu carácter e politicamente imparcial na sua orientação.
É bem-vindo qualquer grupo determinado em repudiar a perseguição, independentemente de onde esta ocorra, quem seja o responsável ou quais sejam as ideias reprimidas.

Mas a experiência mostra-nos que, nestes assuntos, os governos vão apenas na direcção a que a opinião pública os conduz. A pressão da opinião pública há cem anos trouxe a emancipação dos escravos. É altura, agora, para a humanidade insistir na exigência da liberdade de pensamento, tal como conquistou a liberdade do corpo.

Esta é uma versão editada do artigo do Peter Benenson originalmente publicado, a 28 de Maio de 1961, no Observer. A respectiva tradução para a língua portuguesa é uma cortesia da Amnistia Internacional Portugal

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