Pérola do Bolhão, cem anos de porta aberta

A loja conhecida pela fachada Arte Nova, que começou por ser uma loja dedicada ao chá, café e especiarias, mantém-se aberta e propriedade da família que abriu o espaço. Persistência e adaptação aos tempos é o que mantém o negócio vivo.

Fotogaleria
A mercearia, que abriu em 19717, é muito visitada pelos turistas
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

Se há quem tenha dedicado uma vida inteira a um negócio, António Reis é uma dessas pessoas. Tem 84 anos e é proprietário da Pérola do Bolhão, a mercearia que este mês celebra 100 anos de actividade e de história e continua de pedra e cal com a sua fachada imponente ao estilo Arte Nova no 279 da rua da Formosa, no Porto.

É mais novo do que a mercearia que a 23 de Maio de 1917 abriu portas como casa dedicada aos chás, cafés e especiarias, mas conhece-a melhor do que ninguém. Nasceu na casa que está por cima da Pérola, onde ainda reside. É filho de um homem “ambicioso”, de quem herdou o nome e a entrega ao trabalho, que deixou a Vila da Feira rumo à cidade para se tornar num comerciante de sucesso. O objectivo foi cumprido, mas o caminho não foi feito sem esforço e sacrifício pessoal. António Reis, o pai, voltaria à terra só para visita, conta o filho. Essas visitas só se realizavam se fosse mostrar o resultado do sucesso. Fato à medida, chapéu e flor no bolso do casaco. Era assim que chegava à Feira, cumprindo o destino que traçou. Com mais quatro sócios tinha montado a Pérola do Bolhão na capital do Norte.

Tinha tanto de ambicioso como de “bom coração”. “O meu pai era um homem mole. Muito boa pessoa”, recorda a actual dono. Já sem os sócios, a comandar sozinho, havia muita gente que o procurava para pedir ajuda. Raro era dizer que não. “Muitos amigos prejudicaram-no”, diz. Quando casou, a esposa  sempre que via “a casa a arder”, aos mal intencionados “arrumava-os a todos”. “A minha mãe assumiu o papel de homem da casa”, graceja.

O pai nunca tirou férias: “Trabalhou até morrer. Valeu de alguma coisa?”, questiona. É uma pergunta que também podia ser feita a ele mesmo. Aos 84 anos, António Reis, que além do nome também herdou o negócio, não há um dia que não seja o primeiro a chegar à mercearia. Acorda às 6 da manhã, até às 8h lê o jornal e às 9h está com a porta da loja aberta. Só a fecha às 19h. Com ele está a esposa e mais cinco funcionários – o mais novo já está lá há mais de 10 anos e os mais antigos há mais de 30. Já os conhece bem e fazem parte da casa.

Mal se entra na loja, vê-se António Reis sentado atrás da máquina registadora entre a charcutaria, do seu lado esquerdo, e os frutos secos, do lado direito. Quem espreita na montra, onde se garante num letreiro que o melhor bacalhau é ali que se compra, também é possível avistá-lo, “todos os dias”. Questiona a opção do pai, mas também nunca tirou um dia para descansar. No entanto, aos funcionários diz dar sempre um mês a cada um. “As minha férias foram os 18 de meses de tropa que fiz na Póvoa de Varzim em 1954”, recorda. Naquela altura, os militares eram destacados para a Índia, “ano sim, ano não”. Os colegas garantiam-lhe que na Índia eram tratados como reis. “Comiam do bom e do melhor”, diziam. Começava a sonhar com umas férias mais prolongadas. Aquele ano era um “ano não”, por isso não chegou a sair da Póvoa. “Vais continuar a comer arroz com arroz”, disse-lhe um oficial. Ou melhor, saía, mas só para ir a casa nos fins-de-semana. Aproveitava que estava em casa e ajudava-se na loja. Nada a que não estivesse habituado. Desde pequeno, na altura em que frequentava a escola primária, já  ia Porto fora, a pé, entregar as encomendas a casa dos clientes.

Quando o pai faleceu tomou conta do negócio. A loja foi-se adaptando. À especialidade, os chás, cafés e especiarias, juntou-se a secção de mercearia, confeitaria, charcutaria e de frutos secos. A loja está praticamente igual ao que era. No interior trocou-se apenas a prateleiras de madeira por umas de alumínio: “Tivemos que nos ajustar à época”. A fachada feita pela Fábrica do Carvalhinho, de Gaia, continua igual. “Antes de existir a Pérola neste espaço funcionou uma mercearia, mas a fachada era normalíssima”, conta.

O prédio tem mais de 200 anos, realça. Há pouco tempo diz ter visto uns mapas da zona e o edifício já lá estava, ao contrário do mercado do Bolhão, ali ao lado, que começou a funcionar em 1839. O edifício actual, obra do arquitecto Correia da Silva, só foi construído em 1914. Antes disso existia ali um charco. “Bolhão quer dizer bolha de água. Era ali onde iam beber os cavalos do carro americano, antes de existir o eléctrico”, explica.

Actualmente o negócio mantém os clientes mais antigos, mas com o aumento do turismo é sítio de passagem obrigatória dos turistas, que lá passam para comprar vinho e outros produtos. “Principalmente os espanhóis, que cada vez são mais, levam também charcutaria”, diz. Para melhor atender os clientes estrangeiros vale-lhe o curso comercial que tirou na Oliveira Martins, onde aprendeu espanhol, inglês e francês. Este ano o sucesso de vendas têm sido as conservas, conta.

Ao longo dos anos foi vendo várias mercearias tradicionais fecharem. Ali na zona, do tempo da Pérola, continuam abertas a Mercearia do Bolhão, a Casa Ramos e a Casa Chinesa. As outras não se aguentaram face ao surgimento dos supermercados e hipermercados, diz. Para António Reis esse surgimento também tem os seus aspectos positivos: “Dantes os clientes compravam coisas muito miudinhas. Faziam compras só para o dia. Hoje já estão habituados a comprar grandes quantidades.”

Outro aspecto positivo foi habituarem-se a pagar a pronto: “Quase já não vendemos fiado”. António Reis mostra um livro com contas ainda por pagar. São “fiados” com mais de 20 e 30 anos. “Metade destes clientes já morreram. É dinheiro que nunca o vou ver nem com juros nem sem juros”, brinca. A dada altura começou a “ganhar olho” para detectar “caloteiros”. “No primeiro mês vinham fazer umas compras grandes e pagavam logo. No segundo mês se não pagavam logo era no dia 15. Ao terceiro e quarto já juntavam dois meses e depois desapareciam”, conta.

A Pérola do Bolhão a celebrar o centenário, diz estar para se aguentar. As despesas são reduzidas ao máximo e a renda já é antiga. A mercearia está também sinalizada como um dos 81 estabelecimentos comerciais e entidades sem fins lucrativos passíveis de virem a ser classificados no âmbito do programa “Porto de Tradição” (https://www.publico.pt/2017/02/24/local/noticia/lojas-distinguidas-pelo-porto-de-tradicao-terao-que-ter-no-minimo-50-anos-1763092), que visa criar uma protecção especial contra eventuais despejos ou encerramentos forçados e um apoio, garantido pelo município, que deverá passar pela isenção de IMI para os proprietários dos edifícios que alberguem estes espaços. Os lojistas terão acesso a um fundo, cujo valor ainda não está definido, para eventuais intervenções nos respectivos espaços. Para garantir a continuidade tem um filho que “para já ainda não se agarra muito” ao negócio.

Por experiência própria diz que é algo que pode mudar: “Por norma os filhos dos comerciantes só se entregam a 100% quando começam a perceber que a continuidade do negócio depende deles”.

Sugerir correcção
Comentar