Para a inquietação da nossa memória

Dos títulos da competição de Cannes que tiveram a pretensão de falar sobre hoje, 120 Battements par Minute foi aquele que o fez, é aquele que o faz, como proposta de um colectivo – uma equipa, actor, realizadores – para a inquietação, estímulo e conversa com a nossa memória.

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É caso para dizer, depois da reacção em pé na Sala Lumière quando Robin Campillo foi chamado ao palco para receber o Grande Prémio do júri (perdendo a Palma de Ouro para The Square, de Ruben Östlund), que o favoritismo anunciado de 120 Battements par Minute se cumpriu inteiramente. Emotivamente.

Veio à memória o ano de 2008, o da reacção provocada pela Palma de Ouro a A Turma, de Laurent Cantet – mas aí também acontecia que o prémio máximo de Cannes não era atribuído a um filme francês desde 1987, desde Sous le soleil de Satan, de Maurice Pialat. Vem à memória, em 120 Battements par Minute, filme de 2017, A Turma, filme de 2008. Se calhar parte dessa Palma já era de Campillo, cineasta (em 2004, Les Revenants, em 2013, Eastern Boys), mas nesse filme argumentista (adaptando o livro de François Bégaudau). Nessa qualidade foi cúmplice de Cantet em vários outros filmes: O Emprego do TempoRaposas de Fogo e o recente L’Atelier.

Campillo admite ter utilizado uma série de procedimentos aplicados durante a rodagem de A Turma, concretamente o de ir construindo as personagens deste filme coral sobre os dias de raiva, dor e euforia que foram os dos anos 90 do Act Up francês, através de longos ensaios. Depois, fazendo as cenas evoluírem, ao longo do dia da rodagem, com a utilização de várias câmaras, três, concretamente, e de acordo com o que ia acontecendo. Ainda, misturando, na versão final de uma cena, os momentos mais crus e espontâneos de um actor/personagem nas primeiras takes e as suas cenas mais logradas.

Vários dos enquadramentos e das sequências de 120 Battements par Minute, aqueles em que os membros do Act Up discutem as estratégias de acção política directa, por exemplo, evocam directamente os da sala de aula de A Turma: em ambos os casos as discussões e os debates de grupo revelavam as personagens como um work in progress que vai resultando da exposição íntima na arena pública até porque os membros do Act Up eram pessoas que, para quebrarem com o silêncio que os anos 80 tinham imposto, foram obrigadas a entregar o corpo a uma causa, era questão de vida e de morte fazer a palavra avançar para a acção. É isto que faz o “tempo” singular de 120 Battements par Minute, filme que parte de memórias galvanizantes e dolorosas do próprio Campillo, membro do Act Up nesses anos e que há muito queria concretizar o projecto, até que o pudor, finalmente, foi conquistado com um il est temps...: filme sobre um passado, não tem qualquer sinal do pitoresco da reconstituição de época, é negociação vibrante, presente e dialéctica entre o privado e o público, o individual e o colectivo, a realidade e a fantasmagoria. Isto é: é um filme sobre o presente. Dos títulos da competição de Cannes que tiveram a pretensão de falar sobre hoje, foi aquele que o fez, é aquele que o faz, como proposta de um colectivo  uma equipa de rodagem  para a inquietação e estímulo da nossa memória.

“É muito difícil criar um momento político hoje. É difícil mobilizar as pessoas hoje. Hoje há movimentos gay, sim, mas o Act Up era outra coisa, e era minoritário: as pessoas não tinham escolha, era preciso juntarem-se para irem para a frente. Não sei o que faria hoje as pessoas mobilizarem-se”, dizia Campillo nos primeiros dias de uma edição, a 70ª, que ontem terminou.

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