Arqueologia e andorinhas

Durante meio ano, Annemarie Schwarzenbach fez o périplo das estações arqueológicas do Médio Oriente. Este livro é o diário dessa viagem.

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A viagem, em Annemarie Schwarzenbach, excede, porém, o ensaio de uma fuga

Embora “os belos olivais às portas da cidade” parecessem “cheios de promessas”, Damasco revelou-se decepcionante. Annemarie Schwarzenbach não se demorou na “cidade de S. Paulo” — e com um só epíteto vem prender-se à rede da leitura um inteiro e vasto horizonte cultural e histórico. Rumou a Baalbek. E Baalbek “faz parte desses nomes heróicos que não se pronunciam com ligeireza”. Um desses nomes que podem acender na imaginação aquelas “alegrias arbitrárias” de que falava Proust. A propósito de Balbec. “Como toda a gente”, escreve a autora, “eu já vira fotografias de Baalbek. Mas não se podem fotografar dimensões e a experiência da beleza e da perfeição só incompletamente se transmite.” É então que Annemarie divisa as ruínas que hoje integram o património mundial: “Invadiu-me totalmente um sentimento de fraqueza e de arrebatamento, enquanto o ‘deserto da descrença’ minguou” (pp. 59-60). Muitas páginas e muitos quilómetros adiante, eis Persépolis: “Sobre um alto terraço, as suas colunas recortavam-se, magníficas, no céu nublado e o seu nome tornou-se uma realidade. […] As colunas das salas e dos palácios, as portas, os pátios e as balaustradas das escadas subiam como uma música das sombras da alvorada. Tudo o que o nome real de Persépolis continha adquiria contornos e consistência, condensava-se, como que através de um acto criador único, numa forma eloquente e definitiva.” (p. 170)

Neste “diário de uma viagem” pelo Próximo Oriente abundam nomes que não sabemos articular levianamente: além de Baalbek e de Persépolis, deparamos Biblos e Babilónia, Palmira e Cesareia, Antioquia e Jerusalém, Sídon e Tiro, Ur e Uruk… Mas nem sempre a autora se deixa submergir pela famosa síndrome de Stendhal. Creio que será uma questão de estilo. Não é por defeito ou timidez da paisagem cultural, natural ou humana. É por virtude da prosa, de uma sobriedade eficaz e por vezes melancólica, amparada simultaneamente pela memória histórica e pela observação empírica. Enquanto a Europa se prepara sombriamente para a catástrofe, o Médio Oriente fervilha em escavações arqueológicas. Entre Outubro de 1933 e Abril do ano seguinte, Annemarie Schwarzenbach, nascida em 1908 em Zurique, onde estudou História, escritora e jornalista emergente, fará o périplo dessas missões arqueológicas, viajando pela Turquia, Síria, Líbano, Palestina, Iraque e Irão. Inverno no Próximo Oriente (publicado em 1934) é o relato dessa jornada de muitos dias.

A propósito de um antropólogo que odiava viagens e exploradores, Steiner lembrou que a curiosidade dos ocidentais pelo conhecimento de outras geografias e culturas é única e persistente, pelo menos desde Heródoto. Que tal curiosidade não raras vezes se tenha volvido em tragédia não é matéria que devamos tratar aqui. Mas que outro motivo poderá ter levado Annemarie Schwarzenbach, nascida em berço de ouro suíço, a tornar-se uma das grandes e algo aventurosas viajantes europeias de entre as duas guerras, como o tem comprovado nos últimos 30 anos a ‘redescoberta’ da sua obra escrita e fotográfica? Inclusivamente em Portugal, por onde Annemarie também viajou, e onde vários dos seus textos e livros foram já traduzidos e publicados. É claro que poderíamos invocar o desassossego íntimo que a levará a tóxicas dependências várias. E deveremos, sem dúvida, considerar o insidioso e generalizado mal-estar que ascendia na Europa com o nazismo triunfante. Anote-se, aliás, a evidente simpatia com que Annemerie fala, em 1933, do garbo orgulhoso dos curdos, por exemplo, ou da então jovem República da Turquia — que “faz medo aos europeus”, os quais, “em breve, deixarão de ser [ali] necessários” —, citada como exemplo (que hoje poderá parecer paradoxal) de um país que “acredita no seu futuro e nos valores, tão desprezados na Europa, da razão, da civilização e do progresso”.

A viagem, em Annemarie Schwarzenbach, excede, porém, o ensaio de uma fuga — na geografia e no tempo, quando não em ambos simultaneamente, como é o caso vertente — às sobredeterminações biográficas, e históricas e políticas. Embora a certa altura, após ter visitado a antiga catedral de Tartus, na Síria, se interrogue, justamente, sobre “se não teria sido já […] uma espécie de fuga à Europa” que motivara os cruzados. E é verdade que, em Ur, no Iraque, a propósito de achados do terceiro milénio antes de Cristo e de depósitos sedimentares datando do “dilúvio”, o arqueólogo britânico Leonard Woolley lhe “fala amorosamente de todas estas coisas e dos acontecimentos que evoca como se tivessem sucedido na véspera”. Mas Annemarie não perde de vista a escala humana e prosaica, quando não usurpadora e nefasta, do presente. Vemos, aliás, emergir, neste livro, uma das pequenas e cómicas desgraças do nosso tempo: a industrialização do turismo dito cultural. As ruínas da “capital de Nabucodonosor e de Alexandre” são profanadas por “uma massa cada vez maior de turistas tão curiosos como ignaros”, para desconsolo do arqueólogo alemão Julius Jordan. Escreve Annemarie: “Que pena estas ruínas se terem tornado tão facilmente acessíveis! Multidões de visitantes, munidos das suas cestas de piquenique e tagarelando em inglês, percorrem Babel e calcam sem o mínimo respeito as lajes da álea processional de Nabucodonosor” (p. 96). Nada escapa ao “assalto quotidiano das Kodak e das Leica”. Ora adeus, Instagram! Idêntica massificação ameaça Ur. A autora é até capaz de nos proporcionar um inesperado anticlímax: “Ocorreu-me, então, que estávamos nas terras onde tinham pastado os rebanhos de Abraão, mas a ideia deixou-me indiferente. Encontrar o nosso albergue o mais depressa possível, nada mais me importava” (p. 100).

Por outro lado, não deixa de comover a frequência com que Annemarie, “longe dessa Europa tão amada”, a ela vai buscar analogias para o que vê e descreve. Assim, na Pérsia, em Chiraz, a cidade dos três poetas (pelo menos), as fontes e os jardins recordam-lhe Florença. O cume branco do Damavand, à vista de Teerão, reenvia-a para os maciços natais: “Como em Innsbruck, as montanhas cobertas de neve dominam directamente as largas ruas da cidade”. No Líbano, em Djebail (ou será ainda Biblos?), visita a pacata igreja de S. João: “Lá em cima, entre as colunas e as traves do tecto, esvoaçavam pássaros. Veio-me à memória uma recordação, suscitando em mim uma nostalgia dilacerante: era uma noite de Verão, as andorinhas batiam velozmente as asas, soltando os seus pequenos gritos sonoros, de um lado para o outro do alto da abóbada da igreja de Wies, dando a impressão de que anjos a transportavam…” (p. 79) Wies, a jóia rococó da Baviera. A força desta ilusão de movimento na escrita de Annemarie Schwarzenbach deve ser sublinhada. Na estepe anatólia, “põe-se em movimento a própria paisagem, as colinas giram sobre o seu eixo num suave oscilar de pião, os leitos pedregosos das torrentes precipitam-se sem a mais pequena gota de água” (p. 25). É uma ilusão capaz de mover montanhas, na grandeza telúrica do Irão. E também as andorinhas são recorrentes, havendo surgido anteriormente num grande hotel deserto em Laodiceia: “Dormi num quarto que comunicava com um grande terraço. Como me acontecera já uma vez no Sul de França, andorinhas vindas do largo entraram pela minha janela aberta” (p. 63).

Pascal atribuiu a origem da nossa infelicidade ao facto de não sabermos ficar quietos em casa. Ao pensarmos em Annemarie Schwarzenbach, a alegação parece-nos desnecessária e cruelmente irónica. Durante quase uma década, a escritora suíça viajou extensamente pela Europa e pelo Médio Oriente, por África e pelos Estados Unidos. De comboio, barco, avião, cavalo, automóvel, etc. Morreu na Suíça, em 1942, na sequência de uma queda de bicicleta. Tinha 34 anos. “Nada escapa mais ao nosso controlo do que os acontecimentos da nossa vida” — anotara ela em Bagdade, a 29 de Janeiro de 1934. Se Annemarie se houvesse limitado a viajar à volta do seu quarto, quem poderia ter-nos contado esta viagem de Inverno?

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