Jim Riordan, um jogador secreto na União Soviética

Este britânico, professor, autor de livros para crianças e comunista, foi defesa-central do Spartak de Moscovo durante dois jogos.

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A estátua de Lenine junto ao agora chamado estádio Luzhniki. Maxim Zmeyev/Reuters
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Jim Riordan, comunista, escritor de livros infantis, professor de história e futebolista DR

O “frio”, como lhe chamava John Le Carré, era onde estavam os espiões ocidentais no tempo da Guerra Fria, agentes infiltrados para lá das linhas inimigas. Mas Jim Riordan não era, propriamente, um espião. Estava no “frio”, em Moscovo, mas não trabalhava para o MI6, nem para o KGB. Era comunista, estudava numa escola moscovita para estrangeiros, fazia traduções para inglês de textos socialistas e gostava de jogar futebol com os outros expatriados britânicos na terra dos sovietes. Mas Jim também foi Yakov, defesa central do Spartak de Moscovo. Como? Disseram-lhe para aparecer no Estádio Lenine a um domingo. E que não se esquecesse de levar as chuteiras.

Riordan contou a história numa autobiografia publicada em 2008 chamada “Comrade Jim: The Spy Who Played for Spartak” (Harper Collins, sem edição portuguesa), mas não deixou de ter os seus detractores que duvidavam da veracidade do episódio. Na verdade, não é muito provável que um inglês que não era mais que um futebolista amador entrasse tão facilmente numa das melhores equipas de um dos países de topo do futebol (estávamos nos anos 1960 e a União Soviética tinha sido campeã da Europa em 1960 e vice-campeã quatro anos depois). Mas, até morrer em 2012, com 75 anos, na sua cidade natal de Portsmouth, Riordan nunca voltou atrás neste episódio que ocorreu quando tinha 27 anos e era um jovem comunista britânico a viver no centro do mundo soviético.

Nascido em Portsmouth, Riordan aprendeu a falar russo na academia da Royal Air Force e licenciou-se em Estudos Russos na Universidade de Birmingham em 1960, numa altura em que já era membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB). Um ano depois, foi estudar para Moscovo e por lá ficou cinco anos. Conviveu com Nikita Khrushchev, secretário-geral do PCUS, com Yuri Gagarin, primeiro homem no espaço, com Lev Yashin, a “Aranha Negra” das balizas, e tinha boas relações, tanto com os diplomatas britânicos, como com os espiões britânicos que viviam em Moscovo.

Uma das constantes da sua vida normal na capital soviética era o futebol. Estava longe do seu Portsmouth FC (mas arranjava maneira de saber os resultados) e participava em jogos amadores com gente da embaixada num campo secundário perto do Estádio Lenine (o Luznhiki). Eram britânicos dos dois lados a juntarem-se para jogar à bola e, no fim, ainda bebiam umas cervejas, contava Riordan. Num desses jogos, havia mais alguém a ver o jogo, um amigo do britânico que era internacional soviético e jogava no Spartak, acompanhado por Nikita Simonyan, o treinador.

“No final, vieram ter comigo e o Simonyan perguntou-me se eu não queria ir ao treino deles. Achei um gesto incrivelmente simpático e fui, mas tentei não atrapalhar”, conta. Alguns dias depois, conta, recebeu uma chamada do treinador. “Ele perguntou-me se eu estava livre no domingo e eu disse que sim. Pensei que ele tinha bilhetes para o jogo, ou coisa parecida. E ele ainda me disse para levar as chuteiras. Estava com pressa e nem pensei muito no assunto.” Depois de cumprindo o tal jogo entre os diplomatas britânicos e uma equipa do resto do mundo (cujo capitão era o embaixador do Quénia), Riordan apresentou-se no estádio com as chuteiras e deram-lhe a camisola 5 do Spartak. Ia ser defesa-central num jogo contra o Pakhtakor Tashkent, do Uzbequistão, porque o jogador que era para jogar, recorda o britânico, “estava bêbado que nem um girino”. Riordan tinha físico de central (1,95m de altura) e o treinador mandou-o estar em cima do avançado adversário. Como não havia substituições na altura, Riordan, a não ser que partisse uma perna, teria de jogar os 90 minutos.

Perante 50 mil pessoas nas bancadas, Riordan foi apresentado como Yakov Eordahnov no sistema sonoro, um nome de sonoridade russa e nada britânica. Mesmo sendo comunista, Riordan (e que o estava a meter em jogo) corria um enorme risco ao ser um estrangeiro numa das maiores equipas da União Soviética, menor porque Estaline já não estava no poder, mas, ainda assim, significativo. Assim, passaria despercebido (demasiado, como mais tarde viria a perceber). Ao intervalo, 0-2 para os uzbeques, mas nenhum dos golos culpa do camarada Yakov. Na segunda parte, o Spartak conseguiu empatar e, depois do jogo, foi com os colegas de equipa beber (muito) vodka.

Riordan/Eordahnov não terá sido assim tão mau porque Simonyan voltou a chamá-lo para um jogo duas semanas depois, desta vez contra o Kairat Almaty, do Cazaquistão, e a sua missão seria, de novo, estar em cima do ponta-de-lança adversário “um tipo grande, meio careca e com um ar sinistro”. O Spartak venceu, mas o seu número 5 não esteve particularmente brilhante, acabando despromovido para as reservas e não mais voltando a jogar. Mas já tinha entrado para a história. Era o primeiro ocidental a jogar numa equipa da União Soviética. O pior era prová-lo.

Riordan abandonou a União Soviética em 1966 e a sua ligação ao futebol manteve-se na qualidade de adepto do Portsmouth e futebolista amador. Continuou a ser professor, escreveu livros infantis, sendo ainda comentador ocasional da BBC para assuntos relacionados com a União Soviética, para além de ter sido adido da comitiva britânica nos Jogos Olímpicos de Moscovo em 1980. Mas sempre teve muita gente a desafiar a sua história e a sua única defesa era mesmo a sua palavra – nem com a camisola tinha ficado.

Já depois da queda do comunismo, mais de quarenta anos depois, Riordan voltou à Rússia com uma equipa da BBC para fazer um documentário e foi à procura dos seus antigos companheiros, mas não conseguia que ninguém falasse de Yakov Eordhnov. “Quase todos diziam que se tinham esquecido ou recusaram-se a falar do passado. Não negavam. Simplesmente diziam que não se lembravam porque já tinha sido há muito tempo”, escreveu Riordan. Nem o próprio Spartak admite, na sua história oficial, ter tido um jogador estrangeiro nos anos 1960 que, para além do mais, não estava inscrito.

A este fenómeno de amnésia colectiva escapou um dos seus antigos colegas de equipa, que se lembrava bem dele e validou a sua história, já que não há qualquer prova documental que a sustente, sejam fichas de jogo, artigos de jornais ou fotografias. “Já começava a pensar que tinha imaginado tudo. Não apenas o futebol, mas toda a extraordinária aventura de Moscovo”, conta no livro o camarada Jim Riordan, n.º 5 do Spartak de Moscovo durante 180 minutos.

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos. Ouça também o podcast

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